Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Profetas digitais

Como acontece em todas as eras, a da internet tem sua própria geração de gurus. São os “ciberteóricos” que sonham com um futuro eletrônico aperfeiçoável e anunciam preceitos sobre a necessidade de refazer o mundo. Como muitos que se revoltaram contra a religião, eles trazem não a paz, mas a espada. A mudança é inevitável. É preciso abandonar os velhos hábitos. Entretanto, os ciberteóricos pertencem a uma espécie peculiar de estilo: eles agitam e defendem uma revolução constante, que, no entanto, beneficiará principalmente as gigantes da tecnologia, diante de cuja imagem virtual eles se curvam.

O jargão dos ciberteóricos revela um ódio adolescente do mundo. Jay Rosen, famoso ciberguru do “futuro da notícia”, não perde uma oportunidade para menosprezar empresas editoriais associando-as ao termo “legado”, no sentido de sistema antiquado. Outro termo favorito dos ciberteóricos é “disrupt” (romper, desconstruir, em português). A maioria das pessoas acha a ideia irritante, mas para eles, quanto mais a tecnologia romper as práticas estabelecidas, mais emocionante ela se tornará.

Outro cibercharlatão, o jornalista Jeff Jarvis, escreveu no livro O Que o Google Faria?, de 2009: “A educação é uma das instituições que mais merecem ser desconstruídas”. (O tom de repúdio ressentido é típico.) Que forma deveria assumir esta subversão? A startup Coursera, por exemplo, promete transformar o ensino universitário, oferecendo trechos de aulas em vídeo e fazendo que os alunos deem notas para os trabalhos uns dos outros. Se você é um ciberteórico, este truque é um plano brilhante para alavancar o poder dos indivíduos. Se não for, é um plano brilhante para descarregar a maior parte do trabalho do ensino nas costas dos alunos.

Outra suposta qualidade do Coursera é o fato de ele ser “aberto”, como tudo agora deve ser. O cibercredo do “aberto” soa tão liberal e amigável que é fácil deixar de prestar atenção à sua hipocrisia. As grandes empresas de tecnologia, que são os exemplos preferidos dos ciberteóricos sobre a próxima ordem mundial, são tudo menos abertas. O Google não divulga seu algoritmo de busca; a Apple tem um notório sigilo sobre seus produtos; o Facebook costuma mudar as opções de privacidade dos usuários. Em busca do lucro, tais empresas constroem freneticamente utopias semiabertas de conteúdo proprietário.

O software de código aberto, no modelo do Linux, era o exemplo favorito do motivo pelo qual o conceito aberto predomina sobre o fechado. Entretanto, apesar dos sucessos admiráveis (particularmente na indústria), o software comercial e fechado ainda predomina. A maioria dos clientes sabe, por experiência própria, que o sistema Android dos celulares é customizado e fechado novamente pelas fabricantes.

“Ter oleodutos, funcionários, produtos ou mesmo propriedade intelectual não é mais a chave do sucesso”, escreveu Jarvis em 2009. “O sucesso está na abertura.” Qual é, neste momento, a empresa de maior valor de mercado do mundo? A Apple, que vende produtos físicos, guarda seu acervo de patentes e é tão “aberta” quanto o Fort Knox (posto militar do Exército dos Estados Unidos).

O plano genial do Coursera para “desconstruir” o ensino universitário pode ser aprendido numa palestra do TED (sigla para tecnologia, educação e desenvolvimento). São apresentações com a duração máxima de 18 minutos, com abundância de recursos, que oferecem ideias do tamanho de um nugget. Uma palestra do TED tem o formato de uma coleção de histórias reunidas sob um título ridiculamente simples, num vídeo que depois os entusiastas das redes sociais enviam aos amigos.

O título perfeito de uma apresentação TED é o recente Os Jogos que Podem lhe Dar Dez Anos a Mais de Vida, da ciberteórica da gameficação Jane McGonigal. O que poderia ser este jogo? Ligar um joystick a um pulmão de aço? Não, trata-se de um pequeno jogo online criado por ela chamado SuperBetter. Até o momento, não há estudos com grande número de pessoas que mostrem que o game faz você viver dez anos a mais.

Rebanho

Os pensadores cibernéticos levaram a ideia de sabedoria coletiva para um lugar que mal se assemelha à realidade que conhecemos. Agora é possível propor seriamente que há ocasiões em que “a pessoa mais inteligente da sala é a sala”, como afirma o subtítulo do livro do teórico David Weinberger, Too Big to Know, publicado em janeiro. Segundo sua ideia estranhamente autodestrutiva, os livros são formas ultrapassadas de organização da “informação”, e o volume total das informações agora é tão esmagador que talvez admitamos que “a rede” saiba mais do que nós.
Se a tese fosse correta, o seu livro seria dispensável, porque um número aleatório de blogueiros poderia escrever coisas melhores. O livro é também tipicamente cibernético por conter um ódio pseudo-democrático a qualquer forma de especialização. “A internet”, proclama ele, “permite que os grupos desenvolvam mais ideias do que um indivíduo sozinho”. Assim como a escrita e a conversação, desde que foram criadas.

É surpreendente a frequência com que a Wikipedia é citada como paradigma de uma “criação do conhecimento” comunitária, considerando que a Wikipedia proíbe explicitamente a criação de conhecimento novo. Sua lei básica é “nenhuma pesquisa original”, com exceção da menção a “fatos” ou “ideias” que não tenham sido já divulgados em outros lugares. A obediência ao mandamento faz que a Wikipedia dependa de fontes citadas, incluindo artigos de jornais e de revistas acadêmicas, no que se refere ao “conhecimento” que ela contém. Isto não significa que a Wikipedia não tenha utilidade – longe disso –, mas não é um exemplo daquilo que se afirma com tanta frequência que ela seja.

Os ciberteóricos não ousam distinguir informação de conhecimento, porque isto exigiria que eles fizessem a triagem intelectual que o seu sucesso retórico exige que se evite. Um livro contém menos informações, em termos de bytes, do que um vídeo de um gatinho. E se você é um sábio cibernético, provavelmente desprezará os livros. Clay Shirky, autor de Lá Vem Todo Mundo, de 2008 – um manifesto coletivo que agora é considerado um exercício desesperado de apoio a serviços que já foram populares, como Flickr – escreveu no mesmo ano: “Ninguém lê Guerra e Paz. É muito longo, e não é tão interessante”. (Na verdade, segundo o Nielsen BookScan, Guerra e Paz vendeu em 2011 cerca de 17 mil cópias somente no Reino Unido).

Os livros são importantes para o tagarela cibernético em busca de projeção pessoal, mas de uma maneira diferente. Jarvis contou nos agradecimentos de sua publicação mais recente, Public Parts: “(Seth) Godin é o culpado por eu escrever livros. Um dia, ele me mandou sentar e falou que eu seria um tolo se não escrevesse um livro – e seria ainda mais tolo se achasse que o livro era o objetivo. Não, ele disse, o livro serviria para eu construir a minha reputação diante do público, e assim levaria a outras coisas. E foi o que aconteceu”. É isso: se você escreve um livro achando que o objetivo é o livro, você é tolo. A função exata de um livro é a de um cartão de visita que lhe abre portas e faz você ser convidado para lugares onde as coisas acontecem de verdade. Os que pensam que a literatura, o pensamento e a argumentação são em si objetivos nobres são tolos. É esta a afirmação do anti-intelectual ultramoderno.

Supercompartilhamento

Alguns poderiam considerar um fracasso dos ciberteóricos o fato de o mundo que conhecemos hoje ter tão pouco a ver com as descrições deles. As pessoas ainda leem romances russos; o mercado de massa não foi substituído por “nichos” (basta perguntar à autora de Cinquenta Tons de Cinza, E.L. James). O aberto não é o modelo predominante de sucesso empresarial da internet. O New York Times hoje tem cerca de 600 mil assinantes digitais, embora os dogmáticos cibernéticos jurassem que o acesso pago nunca funcionaria.

No artigo O Que a Mídia Pode Aprender com o Facebook, Jarvis fala que os jornais deveriam imitar o modelo de Mark Zuckerberg: “A produção é cara. O compartilhamento não é caro e é escalável. O Facebook logo atenderá um bilhão de pessoas com uma equipe equivalente à de um grande jornal”. Faça os leitores se encarregarem da maior parte ou de todo o trabalho e, pronto! O legado da mídia (a ultrapassada) é transformado na mídia social que dá dinheiro.

Com a mídia “social” ocorre o mesmo que com o conceito de compartilhamento: os cibernéticos adotaram um termo plausível e deram um significado novo e instrumental. Social hoje implica uma técnica comercial para convencer usuários a revelar mais informações aos anunciantes sobre suas “redes” de amizade e de contatos comerciais, e para “conectar” usuários a determinadas marcas por meio do botão “curtir” – e logo, como sugerem experimentos do Facebook, haverá um botão “querer”.

Mesmo a leitura de livros – se é que persistir – precisará ser transformada em “leitura social”, como se os livros não fossem já produtos sociais. Entretanto, não importa se os cibergurus estão equivocados a respeito do presente, porque seu valor equivale mais ao de um Nostradamus sem fios. O cibermaníaco idealiza um ciberfuturo perfeito e declara que ele já chegou, ou é tão vago a respeito da data que talvez jamais possa ser refutado. O título de uma recente palestra no TED de Clay Shirky é um exemplo deste presságio que não pode ser desmentido: Como a Internet Transformará (Algum Dia) o Governo.

Os ciberteóricos em geral poderiam talvez ser tolerados como inócuos futuristas, não fosse que muitos deles, pela influência do seu trabalho de consulta e pelos seus palanques virtuais, neste momento estão preocupados em promover um vandalismo cultural. Tudo o que cheirar a coisa ultrapassada da era pré-digital terá de ser derrubado, “rompido” e refeito à sagrada imagem do Google e da Apple, com a exceção de uma maior abertura para as sondagens digitais sobre o oligopólio das companhias de internet. Vida longa para o compartilhamento, a leitura social, o trabalho voluntário de um estudante ou os participantes da “comunidade” online de uma empresa, e a entrega dos seus documentos às megacorporações que exploram dados e controlam a “nuvem”.

Os ciberteóricos adoram aplicar o adjetivo “inteligente” a si mesmos e aos colegas, mas, como grupo, eles são os modelos de anti-intelectuais mais destacados dos nossos dias – pequenos revolucionários da tela de toque e do Twitter.

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[Steven Poole é jornalista do News Statesmen e autor do livro You aren’t what you eat]