Não, calma, não é nada disso que você está pensando. Não me conectei ontem. No final dos anos 1980, o Jornal do Brasil começou a implantar computadores na redação, a princípio como meros processadores de texto. No “Caderno B”, só havia três máquinas. Uma estava comigo. No começo dos 1990, os editores do Globo fizeram um curso sobre a então nascente World Wide Web no Departamento de Informática da PUC-Rio. Eu era um deles. Entre 2000 e 2002, trabalhei no primeiro grande site jornalístico independente do país, o “NoPonto”, no qual eu tinha um blog em que indicava e comentava brevemente textos interessantes disponíveis na internet.
Talvez por causa dessa estrada eu não sofra nem de um deslumbramento acrítico com as possibilidades da internet – que, sim, são infinitas – nem muito menos caia no consumo conspícuo dos novos produtos da indústria de alta tecnologia – que também parecem inesgotáveis. Na verdade, tais comportamentos me incomodam. Conversando ali, trocando e-mails aqui, percebi que meu desconforto não é incomum entre quem trabalha ou no ou com o ramo desde “as antigas”. As coisas tomaram um rumo que, por inexperiência, não prevíamos e nem queríamos. Ficou a sensação de que fomos traídos.
Acho que a minha ficha só começou a cair há quase dois anos, quando morreu Steve Jobs, um dos fundadores da Apple. Admito que fui surpreendido quando seu desaparecimento precoce foi lamentado não apenas como a perda do visionário (que ele era) como também o martírio de um santo (que ele nunca foi). Para mim, fazia tanto sentido depositar flores na porta da sua empresa quanto teria sido fazer uma vigília na frente da Ford quando o velho Henry Ford bateu as botas em 1947. Ambos foram capitalistas inovadores, certo, mas mesmo assim capitalistas em busca do máximo lucro.
O “lado sombrio da força”
Não entenda mal. Não demonizo nem a Apple nem o lucro: espanta-me é que Jobs tenha posado, com sucesso, como uma espécie de homem santo budista. As suas lojas no exterior parecem templos erigidos à tecnologia. Os sacerdotes não raspam a cabeça nem se vestem de laranja, são uns cabeludos de camiseta azul. Para não quebrar o clima, o pagamento é disfarçado. Na hora de passar o cartão de crédito, forma-se uma fila diante do “sumo sacerdote” com uma máquina na mão. Atendido o último da fila, ela some no ar. Não há balcão nem máquinas registradoras. Como se a experiência fosse gratuita (está longe de ser). O materialismo nunca foi tão espiritual.
De modo análogo, acho curioso que milhões de pessoas percam horas de lazer voluntariamente produzindo de graça conteúdo para o Facebook, conteúdo que será embolsado por Mark Zuckerberg mais cedo ou mais tarde. Claro, a sua rede social é útil, mas meu tênis me é bastante útil, e nem por isso eu quero, em gratidão, passar meus dias como escravo numa fábrica do Sudeste asiático. Exagero, claro. Exagero porque acho insólito um empresário conseguir que os consumidores trabalhem gratuitamente para ele e até proclamem “quem não está no Facebook, não existe”. Bem, eu não existo, mas tenho uma camiseta na qual se lê “No, I’m not in the f*#$%g Facebook.”
A internet abriga coisas maravilhosas – como a Wikipedia, enciclopédia colaborativa que acerta tanto quanto a Britânica, mas que está passando o pires entre seus usuários para poder sobreviver, ou como o Renê Silva, que desde garoto cobre o Complexo do Alemão por dentro – e abriga coisas terríveis. Possivelmente minoritárias, estas são populares e galvanizam a web com o “lado sombrio da força”.
A luta de claques
Lá atrás, no século passado, achávamos que o velho projeto acadêmico de troca livre de informações seria a cura para a ignorância, desconcentrando o acesso ao saber e, portanto, ao poder. Éramos, vejo hoje, uns tolinhos imaginando que o mundo digital se descolaria das mazelas do mundo terreno e criaria um paraíso ciberespacial.
No varejo, a internet nunca deixou de ser o que sonhamos: iluminadora e subversiva. No atacado, no entanto, ela se concentra em torno de uma dúzia de sites – e de ainda menos empresas de tecnologia de ponta que lhes dão acesso de onde quer que nos encontremos – e ajuda a espalhar a futilidade, a ignorância e a intolerância. Logo o que, na origem, imaginávamos que ela fosse combater. Quem já se deu à pachorra de ler comentários imoderados embaixo de qualquer texto ou tema minimamente polêmico ou seguir um debate típico no Twitter sabe quão baixo o nível pode descer. Aí a internet vira o gramado no qual o lateral do Madureira aplaude a expulsão do Seedorf.
Não, não me tornei um ludista tardio. Tenho e-reader e uso o computador na média mundial, inclusive para me escangalhar de rir. Porém, a própria dinâmica de um mundo no qual – mais do que nunca na História – “tudo o que é sólido desmancha no ar” dificulta o surgimento de um Marx, de alguém que reflita consistentemente sobre o atual estágio do capitalismo, o tecnológico, e da luta de claques, quer dizer, de classes.
******
Arthur Dapieve é colunista do Globo