No dia em que que a iTunes Store abriu para o público americano, 28 de abril de 2003, o iPod tinha um ano e meio de idade, CDs representavam 98,4% das vendas da indústria fonográfica dos EUA e boa parte do mercado estava cético. Na internet, música pirata sempre vai ganhar, diziam. A loja da Apple oferecia 200 mil músicas à venda das cinco principais gravadoras: Universal, Sony, Warner, EMI e BMG. Era uma indústria em crise, em queda, que só topou a aventura proposta pelo fundador da Apple, Steve Jobs, porque estava desesperada. No domingo, a aventura fez dez anos. E é um dos momentos mais importantes da história da internet.
Dez anos depois, a loja oferece à venda um acervo de 26 milhões de músicas, 700 mil aplicativos, 190 mil episódios de séries de TV e 45 mil filmes. Vende também livros, oferece para download gratuito, podcasts, que são programas gratuitos em áudio ou vídeo, além de cursos também gratuitos de professores das melhores universidades do mundo como Harvard, Stanford e Oxford. CDs e LPs representam 39,9% das vendas da indústria fonográfica nos EUA. A venda de arquivos digitais ocupa um naco de 40,4%. Em 2012, pela primeira vez no século XXI, o negócio da venda de música cresceu. Os céticos estavam errados.
O que Steve Jobs provou foi que, sim, pessoas pagariam por conteúdo digital. O mundo da internet não estava condenado à pirataria. Mas, para transformar a rede num negócio, ele precisou antes reinventar a internet. De trivial, o caminho seguido por Jobs não teve nada.
Vende porque é fácil e prático
Começou em outubro de 2001, com o lançamento do iPod. Hoje, os icônicos fones brancos estão por toda parte. Mas aquele aparelhinho era radical. Porque música transforma a experiência da vida. A afirmação parece um lugar comum, não é. Imagine um passeio por Ipanema, praia bonita, dia de sol, alto verão. Brisa e maresia. Agora imagine esse mesmo passeio enquanto ouve Tom Jobim. Mais que combina, muda. E, para perceber como muda, basta trocar a trilha por heavy metal. O dia é o mesmo, o lugar idem, a experiência se sai radicalmente diversa.
Música portátil já existia. Mas o iPod permitia que carregássemos discos e mais discos. Uma modesta discoteca no bolso e, portanto, a possibilidade de adequar a música ao lugar. O iPod não foi uma inovação solitária porque ele nasceu amarrado a um software. Houve reclamação. Tinha gente que queria botar música dentro do player arrastando o ícone. Como se fosse um disco rígido. O software iTunes se vendia como um organizador de música. Fazia o serviço bem. Organizar muita música para achar fácil depois, no iPod, não é trivial. Mas o programa era também um cavalo de Tróia. E como, para gerenciar o iPod, era preciso sempre abrir aquele aplicativo, foi muito tentador simplesmente encaixar uma loja lá. De encarar a loja todo o dia para criar o hábito foi um pulo.
Era fácil comprar música, era barato a US$ 0,99. As mesmas músicas estavam à disposição em versões piratas e gratuitas, claro. Mas o pirata dá trabalho, noventa e nove centavos nem faz cócegas e está a um clique. Vende, não porque é certo, mas porque é fácil e prático. É, hoje, a maior loja de música em vendas dos EUA. No primeiro trimestre deste ano, vendeu US$ 2,4 bilhões em arquivos.
Conteúdo não perde valor
Ao reinventar na internet o negócio da música, a Apple fez bem mais do que isso. Mostrou que existe um caminho para a venda de conteúdo digital. As pessoas não são contra pagar, se valorizam o que compram. Conforme o digital faz cada vez mais parte de nossos cotidianos, gastamos com ele. No rastro da loja iTunes, veio o modelo de música via streaming como a Spotify. Veio o modelo de aluguel online de filmes mediante assinatura, caso do Netflix, já em operação no Brasil. Ou a cobrança, pelo jornal americano The New York Times, de uma assinatura digital paga por mais de meio milhão de leitores.
Durante metade da história da internet comercial, de comercial ela teve pouco. Porque na rede tudo seria de graça. Faz dez anos que Steve Jobs mostrou o contrário. Não é simples, o modelo tem que fazer sentido. Mas o conteúdo não perde valor por ser digital.
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Pedro Doria é colunista do Globo