Uma formiga sozinha é inofensiva. Até mesmo a rainha, retratada em desenhos animados como estrategista, não passa de uma operária cuja única função é gerar novas crias. Em conjunto, no entanto, não há quem possa com elas.
Há formigueiros tão grandes que seriam inimagináveis em nossa escala. A formiga argentina, nativa do Pantanal, pega carona em navios para se espalhar pelo mundo, formando supercolônias. A maior delas contorna o mar Mediterrâneo. Seus parentes habitam um formigueiro de 900 quilômetros no litoral da Califórnia e outro de tamanho equivalente no Japão.
O planeta está dividido entre as duas civilizações que desenvolveram técnicas de organização social, cultivo de plantas, criação de comida e guerra. Nós somos a segunda. Com cerca de 1,6 milhão de formigas para cada ser humano, as biomassas das duas espécies se equivalem.
Esse mecanismo emergente de coordenação indireta, presente nos insetos de comportamento social, como vespas e abelhas, é chamado de estigmergia, e tem influenciado várias pesquisas em inteligência artificial.
Na natureza, as formigas inicialmente andam sem rumo, em busca de comida. Quando encontram, voltam para a colônia deixando um rastro de feromônios que será identificado e seguido por outros. Com o tempo, os feromônios evaporam, deixando marcada somente a trilha mais usada.
Tipo estranho
É impressionante como um conjunto de tarefas pequenas pode gerar estruturas tão grandes. Mas essa organização emergente é mais comum do que parece. Em uma favela, por exemplo, não há arquitetos ou urbanistas a planejar a posição de casas e ruas. Cada barraco é construído segundo regras bastante simples de convívio, que geram estruturas que desafiam morros e vales, a ponto de, na ocorrência de incêndios nelas, a maioria das perdas ser só material.
Algoritmos de simulação e interação pesquisam o comportamento de formigas e abelhas, procurando compreendê-lo e otimizá-lo para várias aplicações, deslocando parâmetros para testar todas as soluções probabilísticas, combinando técnicas e decidindo qual a melhor a usar.
Suas aplicações podem ser extensas, como a determinação de rotas para veículos autônomos e a medicina em escala celular, com nanorrobôs para caçar tumores. Algumas de suas aplicações práticas já podem ser vistas nos efeitos especiais em cinema e games, como as batalhas de “Senhor dos Anéis” e as revoadas de morcegos em “Batman”.
Já existem protótipos de impressoras 3D capazes de posicionar centenas de milhares de processadores menores do que um grão de areia, no lugar e na orientação precisa. Elas serão capazes de criar computadores em praticamente qualquer objeto, capazes de identificar mudanças de temperatura, pressão ou situação e, a partir dessas informações, agir. O resultado pode ser uma camiseta que está sempre na temperatura certa, um sapato que nunca escorrega ou aparelhos muito mais sofisticados do que os que hoje temos a ousadia de chamar de computadores.
Por ser capaz de criar estruturas simples, baratas, robustas e extremamente resilientes, essa inteligência permitirá que, em um futuro próximo, a percepção do ambiente esteja em praticamente todos os objetos, de roupas a naves espaciais, medicamentos a casas.
É um tipo muito estranho de inteligência, mas não duvido que nos acostumemos rapidamente a ela. Da mesma forma que os objetos um dia foram enriquecidos com eletricidade e fibras sintéticas, não tardará para que tenham uma camada computacional.
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Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP e colunista da Folha de S.Paulo; mantém o blog www.luli.com.br