Rosto branco, fino e ovalado, bochechas rosadas, cavanhaque estilo cafajeste e bigode debochado, olhos puxadinhos, sobrancelhas arqueadas e um sorriso de Monalisa um tanto cruel e sarcástico. Esse personagem poderia ser eu, poderia ser você, poderia ser a torcida do Corinthians acampada no Zuccotti Park em euforia semelhante à primeira conquista da Libertadores. Você já viu esse rosto. Seria um personagem esquecido, fosse tão identificável quanto um discreto Wally perdido nas coloridas multidões. Ao contrário, porém, tem uma face muitíssimo pop: Guy Fawkes (1570-1606).
E Fawkes marcou presença no Brasil nesses dias, em duas vertentes. Por um lado, a máscara do soldado inglês catapultada pelo hollywoodiano V de Vingança (2006) estrelou um punhado de fotografias no Facebook, no Instagram e na imprensa, durante as diversas agitações sociais efervescentes no País. Estava diluído entre os manifestantes na rua. Na segunda-feira, uma manifestação histórica. Na quinta, uma festa estranha com gente esquisita. Uns com balaclavas coloridas, outros com lenços palestinos forjados na Bolívia, muitos com o rosto à mostra (e às vezes a tapa). Também estavam presentes uns que se querem os novos caras-pintadas, com guache verde e amarelo feito blush nas maçãs, e outros que, fanfarrões, brandiam cartazes com os dizeres V de Vinagre, uma referência ao “subversivo” ácido acético proibido na manifestação paulistana do Movimento Passe Livre na semana passada. Mas, cara-pálida, uma figurinha realmente carimbada nas últimas manifestações foi “V”. No Rio, a máscara de feições sinistras custava R$ 20 na semana passada – agora, o hit tem preço promocional de R$ 10. Há até uma versão tupiniquim, com o rosto pincelado na cor amarelo ovo. Na terça-feira, ambulantes paulistanos venderam 500 máscaras a R$ 10, valor tabelado, dizem, em questão de minutos. Item versátil, encaixou-se nas diversas e difusas causas mostradas pelos cartazes de jovens e não tão jovens brasileiros que desfilaram em várias capitais. Tão eclético o acessório que até gente fina, elegante e sincera – alô, chics – aderiu ao disfarce fashion feito de plástico. Fawkes é o novo Che?
Por outro lado, “V” tem outra faceta fora do “mundo real”. Vestindo o mesmo disfarce pop, pipocou na terça-feira uma inusitada mensagem do Anonymous Brasil. São os hackativistas – sonoro neologismo para “hacker + ativista”, não consta no Houaiss mas pode confiar que a expressão existe – que invadiram o Instagram da presidente e o Twitter de uma poderosa revista dias atrás. Diz o início da mensagem de 1 minuto e 45 segundos postado no YouTube: “Seremos simples e diretos. As mídias de rádio e TV dizem que não temos uma causa específica. Isso pode enfraquecer o movimento. Só a diminuição do valor das passagens de transportes públicos não nos satisfazem, mas realmente temos que saber por onde começar um novo Brasil”, com música de suspense ao fundo, tom azulado nas imagens trepidantes e voz grossa digitalmente alterada, tal qual os discursos do movimento propagados em outros idiomas. Desta vez, os mascarados brasileiros pretendem pautar cinco metas específicas para as novas manifestações:
“1º. Não à PEC 37; 2º. Saída imediata de Renan Calheiros da presidência do Congresso Nacional; 3º. Imediata investigação e punição de irregularidades nas obras da Copa do Mundo, pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal; 4º. Queremos uma lei que torne corrupção no Congresso crime hediondo; 5º. Fim do foro privilegiado, pois ele é um ultraje ao Artigo 5º da nossa Constituição”.
“Somos todos”
Wish list política à parte, o mesmo semblante do Anonymous no Brasil e no mundo, Guy Fawkes, já é um símbolo – para não dizer um clichê – de diversos movimentos. Do outono americano no Occupy Wall Street aos levantes da Primavera Árabe, o herói folk do século 17 se tornou um ícone para esses movimentos “horizontais” e sem líderes. Em Londres, em 2011, Julian Assange também vestiu a máscara por uns minutos – mas a polícia mui gentilmente pediu para que o fundador do WikiLeaks a retirasse, pois a lei britânica não permite “anonimato público”. Em Istambul e Paris, em 2013, batata: lá estavam as benditas vendettas mais uma vez.
Muitas máscaras foram feitas desde que a HQ inglesa V for Vendetta, assinada pelo escritor Alan Moore e pelo ilustrador David Lloyd na década de 1980, ganhou uma versão cinematográfica em 2006 pela Warner Brothers (aliás, The New York Times alertou aos rebeldes que, durante as convulsões sociais nos idos de 2011, as máscaras pretensamente anarquistas, made in China e no México, contribuíram parcialmente para o lucro de US$ 28 bilhões da gigante americana Time Warner, que detém os direitos da ilustração), mas foram os hackers do Anonymous que lhe deram destaque internacional, com protestos por volta de 2008. De lá para cá, o símbolo fez sucesso nas diversas manifestações sociais mundo afora e também noutras arenas menos politizadas em diferentes hemisférios, como Halloween e Rock in Rio. E, no último baile dos mascarados brasileiros, todo mundo quis tirar sua casquinha com as manifestações.
Mas Guy Fawkes, o rosto por atrás da misteriosa máscara, você deve se lembrar, tem uma história controversa. Foi o soldado católico que tentou explodir o Parlamento britânico no dia 5 de novembro de 1605, na tal Conspiração da Pólvora. A ideia era derrubar o rei protestante, os parlamentares e a nobreza do chá das 5. Expert em explosivos, o soldado de 35 anos era o responsável pelos 36 barris de pólvora. Mas o complô católico vazou, o golpe fracassou e Fawkes, acusado de traição, preso e torturado, se suicidou para escapar da “forca” – na verdade, condenados à morte, Fawkes e os outros conspiradores seriam estripados, esquartejados e depois decapitados, quer dizer, uma baita tranquilidade na hora de descansar em paz.
Da pólvora ao vinagre, o símbolo de Guy Fawkes continua zanzando por aí, na rua e na internet. Uns gostam do pop appeal. Outros preferem mostrar a cara limpa, que máscara o quê, quem precisa se esconder, etc. Atualmente, diferentes ideias e imagens se incorporam a essa moderna personalidade anônima: anarquistas, anti-heróis, baderneiros, justiceiros, rebeldes, revolucionários, terroristas, Deus e o diabo. Não é possível definir quem são e onde estão, mas dá para dizer que andam incomodando muito gente.
Nos próximos dias, o Anonymous Brasil pretende liderar manifestações em prol das tais cinco causas. Na noite de quinta-feira (20/6), a página do movimento foi derrubada no Facebook, desaparecendo sem deixar rastros. Em resposta ao sumiço misterioso, um dos anônimos criticou a possível censura. E esclareceu para confundir: “Não somos uma organização. Sou você. Sou fake. Sou real. Somos todos. Não somos ninguém. Somos uma ideia”.
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Juliana Sayuri, do Estado de S.Paulo