Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

É doce morrer online

Nesta semana perdemos André Stolarski. Câncer. Amigo de amigos, não me era próximo. Eu estava mais para seu fã, influenciado por seu trabalho como curador e tradutor. No velório, sobravam choros, histórias e Facebook. Nas mídias sociais, comentários mudavam da surpresa para a perplexidade, incredulidade e elegias. Era de se esperar.

Nos últimos anos, a internet se consolidou como a principal fonte de notícias trágicas. Se má notícia corre rápido, não poderia ter escolhido melhor caminho. O mesmo canal também parece ter substituído tabuleiros e redes mediúnicas como forma preferencial de se comunicar com o além. Perder um amigo ou familiar é dolorido e burocrático. Ao impacto emocional soma-se o incômodo de administrar contas bancárias, registros, bens e atestados que protocolam a existência. Com o número progressivo de redes sociais, morrer tornou-se ainda mais complicado. O que fazer com o legado digital? Como dispor desse corpo sem forma?

Gmail e Hotmail permitem que as contas de usuários falecidos sejam acessadas por familiares. Twitter e outras redes têm políticas variadas, a maioria congelando a conta e removendo-a discretamente quando o interesse por ela decair. Wikipédia e serviços de conteúdo como blogs e repositórios de vídeo se comportam como editoras, deixando o material publicado disponível até ordem em contrário. Como na vida real, quem deixar um legado poderá ser lembrado. Para o resto, o anonimato.

Imperfeita e desafiadora

Para manter a memória, serviços como Remembered.com, MemorialGardens e Bcelebrated criam sites biográficos e convidam os amigos do falecido a submeter fotos e histórias. Não há, no entanto, cemitério digital maior do que o Facebook. Sua política é transformar o perfil de falecido em um memorial. O nome não aparece nas sugestões de amizade, só amigos podem ver o perfil e atualizações são removidas.

Quem se preocupa com as últimas palavras pode usar MyLastEmail ou EternityMessage para a publicação póstuma de mensagens de texto ou vídeo. Há um quê de carta de suicida nos serviços, que também podem ser usados por almas vingativas para caluniar os vivos. A morte exime vítimas de qualquer irresponsabilidade. Alguns produtos beiram o horripilante. O TheVoiceLibrary preserva a voz e o LifeNaut guarda uma amostra do DNA. O LivesOn usa inteligência artificial para analisar o histórico, preferências e vocabulário de seus usuários para usar o Twitter em seu nome depois da morte, compartilhando links e fazendo comentários aleatórios – uma pessoa gerada por computador.

Usuários da rede ainda são novos demais para levá-la em conta, mas breve se chegará ao momento em que o número de falecidos superará o dos vivos. Futuros historiadores, como na música do Chico, tentarão decifrar o eco de antigas palavras, fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos, vestígios de civilização. Como sou ateu e não chegado a cemitérios, prefiro pensar que o legado do André se perpetua no que ele deixou comigo, uma obra imperfeita e desafiadora como uma sonata de Schubert.

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Luli Radfahrer é colunista da Folha de S.Paulo