Berthier Ribeiro-Neto, um engenheiro de 53 anos que se gaba de ser bom cozinheiro, não nega suas origens. Fala cantado, “come” parte das palavras de vez em quando e usa a expressão “trem” para definir várias coisas diferentes. Mas esse doutor em ciência da computação e torcedor do Cruzeiro é peça-chave de uma companhia com sotaque bem diferente do seu – e que soa tão californiano quanto ele é mineiro: o Google.
Em 2004, Ribeiro-Neto comandava a Akwan, da qual era cofundador com outros professores e alunos da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), quando foi procurado pelo Google. A Akwan já tinha dado alguns passos importantes na mineração de dados, uma área de interesse permanente para o Google. Passara de seis para 50 clientes, depois de expandir a abordagem comercial dos grandes clientes para companhias menores, e emplacara projetos de repercussão em grupos como a Editora Abril e a Odebrecht. Na primeira, ajudou a identificar os textos mais lidos de uma publicação para reorientar a linha editorial. Na segunda, reorganizou o processo para recuperar informações e participar de licitações públicas.
As conversações avançaram, mas o negócio – fechado em 2005 – só foi concretizado depois que os executivos do Google conheceram todos os engenheiros da empresa, uma exigência da companhia americana para levar o plano adiante. “O que atraiu o interesse do Google foram as pessoas”, diz Ribeiro-Neto.
Brasileiros são maioria
Hoje, Belo Horizonte sedia um dos mais reconhecidos entre os cerca de 30 centros de engenharia da companhia espalhados pelo mundo. A unidade é responsável pelo que a companhia considera ser a segunda melhoria mais importante em seu sistema de busca – uma invenção mantida em sigilo – e responde por cinco das 30 maiores inovações desde que o Google entrou no ar, há 15 anos.
Desde a aquisição da Akwan, o Google já destinou US$ 150 milhões ao centro de Belo Horizonte. O dinheiro foi todo gasto, a maior parte em pessoal. “Sim, boas cabeças custam caro”, diz Ribeiro-Neto ao Valor. Há cuidados especiais para manter os talentos dentro de casa, com programas especiais de bônus e recompensas. Quando alguém é sondado por um concorrente, entra em ação uma máquina de retenção para tentar impedir a saída do profissional cobiçado.
Cerca de 100 engenheiros trabalham no centro, além de uma equipe de apoio de 20 pessoas, e sempre há vagas abertas à espera de candidatos. “Só deixamos de contratar em 2009, por causa da crise econômica, em atendimento a uma orientação mundial do Google”, diz Ribeiro-Neto. Brasileiros são maioria, mas dividem espaço com colegas da Holanda, Estados Unidos, Alemanha, Colômbia, Peru, entre uma longa lista de nacionalidades.
Funil de inovação
Como diretor de engenharia do Google na América Latina, o maior desafio de Ribeiro-Neto e sua equipe é manter o mecanismo de busca atual. À primeira vista, parece não haver muito o que fazer. O Google lidera com folga o setor. A empresa respondeu por 66,9% das buscas nos Estados Unidos em agosto, segundo a empresa de pesquisa comScore. No Brasil, seu site local ficou com 82,08% das buscas no mesmo mês, seguido da versão internacional, com 7,25%, de acordo com a Hitwise, da Serasa Experian. Sobra pouco espaço para concorrentes como o Bing, da Microsoft, e o Yahoo.
A noção, porém, é que um descuido pode ser fatal para a sobrevivência da companhia. O Google precisa conquistar audiência e mantê-la fiel para vender publicidade digital. O problema é antever alterações na preferência do público. O Orkut, a rede social do Google, já foi a mais popular no Brasil. Perdeu tanto espaço que, no mês passado, ocupava um tímido 6º lugar em acesso, com 1,34%, frente aos líder Facebook, com 70,10%, de acordo com números da Hitwise. “O risco está no fato de que amanhã ou depois, dois ou três garotos de algum lugar do mundo podem criar um mecanismo que seja tão bom quanto os demais para consultas comuns, mas muito melhor para responder perguntas mais difíceis”, diz Ribeiro-Neto. Seria uma questão de tempo para começar um boca a boca capaz de transferir rapidamente multidões de usuários para o novo concorrente.
Para evitar ameaças, o Google estabeleceu uma espécie de funil de inovação pelo qual entram muitas ideias, mas poucas – só as melhores – são implantadas. Os números mostram isso. De 118.812 sugestões feitas pelos centros de engenharia, 10.931 foram encaminhadas para uma análise mais detalhada. Dessas, 7.018 foram avaliadas por usuários reais e só 665 acabaram adotadas efetivamente. Isso significa uma média de duas mudanças por dia, mesmo que quase ninguém perceba.
Peça de roupa
O centro de Belo Horizonte cumpre um papel estratégico porque está concentrado na melhoria dos rankings – a inteligência que faz com que os resultados mais relevantes apareçam primeiro. Foi essa capacidade que ajudou a fazer do Google o que ele é. O Google não foi o primeiro de sua espécie. Quando os fundadores Sergey Brin e Larry Page criaram o motor do sistema, havia muitos concorrentes estabelecidos como o Excite, o AltaVista e o Yahoo, entre outros. A diferença é que a tecnologia criada pela dupla usava as próprias consultas dos internautas para estabelecer uma ordem de prioridade, aumentando a relevância dos resultados.
O Google também automatizou completamente os procedimentos. Até hoje, não há nenhuma intervenção humana no mecanismo de busca da companhia. Quando a empresa estreou, os serviços existentes usavam pessoas para ajudar a estabelecer a prioridade, um arranjo inconcebível hoje, depois de a web crescer tanto e tão rapidamente. Em 1998, quando foi criado, o Google tinha 26 milhões de páginas indexadas. Em 2000, esse número já era de 1 bilhão. Atualmente, são pesquisados 60 trilhões de endereços na web.
Uma maneira de melhorar a tecnologia é detectar o que os pesquisadores chamam de busca quebrada, ou seja, a resposta pouco eficiente a uma pesquisa. “Vemos o que não funciona bem e tentamos resolver o problema que já existe”, diz Bruno Possas, engenheiro de software que trabalha em Belo Horizonte.
A outra parte do trabalho consiste em tentar antecipar necessidades que ainda não existem ou só estão esboçadas, embora isso seja difícil. Por exemplo, o Google Glass, os óculos com conexão à internet que a companhia prevê lançar nos próximos meses, é muito aguardado, mas não dá para saber como o consumidor vai usá-lo em um mundo móvel, no qual o computador é quase uma peça de roupa. “No fim das contas, é sempre o usuário que decide as tecnologias que vão prevalecer”, diz Ribeiro-Neto.
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“Reproduzir o Vale do Silício é possível, mas não é fácil”
A trajetória de Berthier Ribeiro-Neto, diretor de engenharia do Google na América Latina, guarda uma singular semelhança com a trajetória dos fundadores da companhia, Sergey Brin e Larry Page. Nascido na cidade mineira de Curvelo, Ribeiro-Neto também ouviu “não” nas primeiras tentativas para levantar capital para sua empresa, a Akwan, que acabou comprada pela gigante de buscas na web.
“Escrevemos um projeto no BNDES para nos candidatar a um aporte de R$ 2 milhões”, conta Ribeiro-Neto. “E era empréstimo, não era investimento, não.” O executivo ficou frustrado quando um funcionário do banco ligou para recusar o projeto. “Ele disse que não havia interesse nesse ‘negócio de internet’”, relembra o engenheiro. Os fundadores do Google, vale lembrar, também foram recebidos com frieza por potenciais investidores no início, a ponto de quase desistirem de criar a companhia.
A história da Akwan é rara no Brasil. As fusões e aquisições no setor de tecnologia da informação (TI) são intensas no país, mas em geral envolvem empresas pequenas compradas por outras um pouco maiores. O objetivo, em boa parte dos casos, é garantir a sobrevivência dos negócios envolvidos. Há também empresas grandes que compram competidoras menores para assumir carteiras de clientes ou uma tecnologia que faltava em seu leque de produtos ou serviços. Fazer uma aquisição para adquirir cérebros, no entanto, e por um grande grupo estrangeiro, permanece incomum.
Cadeia de projetos
Os problemas para manter uma companhia de TI saudável no Brasil são inúmeros, diz Ribeiro-Neto ao Valor. Vão desde a dificuldade de obter dinheiro a baixo custo até encargos trabalhistas pesados demais. E existe a questão do tempo. Muitas empresas de TI nascem da vontade de professores e alunos de universidades que procuram criar um negócio a partir de teses nascidas no ambiente acadêmico. Várias delas, inclusive, iniciam seus negócios sob a proteção temporária de incubadoras universitárias. O problema é que para sobreviver os pesquisadores têm de aprender a vender produtos e administrar o negócio. Resta pouco tempo para se dedicar à pesquisa em si ou à programação, no caso dos engenheiros de software.
Hugo Santana, engenheiro sênior do centro de desenvolvimento de Belo Horizonte, passou por isso. “Como a empresa que eu fundei não dava dinheiro suficiente, me inscrevi em um concurso público”, conta. Aprovado, Santana trabalhava das 7 às 13 horas no Tribunal de Contas do Estado e depois seguia para outra jornada, das 14 às 20 horas, em sua própria empresa.
Os casos ilustram a dificuldade para se montar um ambiente semelhante ao Vale do Silício, na Califórnia, onde se concentram muitas das maiores empresas de tecnologia dos Estados Unidos. A proximidade de investidores, universidades e pesquisadores ajuda a estabelecer uma cadeia bem-sucedida de projetos. Para Ribeiro-Neto, isso não quer dizer que o Vale do Silício não possa ser replicado. Israel conseguiu criar um forte ambiente de inovação, a partir de ações oficiais do governo, afirma o engenheiro. Como consequência, o país é líder em número de empresas não americanas com ações negociadas na Nasdaq. “Se é possível reproduzir [o Vale do Silício]? É. Mas é fácil? Não”, afirma.
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João Luiz Rosa, do Valor Econômico