Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Máquinas de distrair

Faz uma hora que tento iniciar a coluna. O tema já está definido desde a manhã, mas a concentração vai e volta. Em parte, a procrastinação vem por conta do trabalho. As notícias não param de acontecer, têm de ser acompanhadas para o site, para o jornal que o leitor tem em mãos. Mas não é só isso. O e-mail pisca, o Facebook apita, o Twitter pede atenção. Às vezes, é trabalho, mas nem sempre. O computador, o celular e o tablet conspiram para nos desviar. Esse é um problema. É, também, tema de um instigante artigo assinado por Tim Wu, professor de Direito da Universidade de Columbia, na edição que chegou ontem às bancas americanas da New Yorker.

Franz Kafka, lembra Wu, tinha 29 anos quando, de uma sentada, escreveu O Processo. Oito horas de concentração máxima. Jack Kerouac escreveu On the Road em mais tempo: três semanas, todas religiosamente gastas perante um rolo contínuo de papel à máquina, com pausas para comer, dormir e, naturalmente, beber. Era o fundador da geração beat, afinal. Beber se fazia necessário. Esse tipo de concentração seria possível hoje? Por causa da maneira como são construídos nossos dispositivos digitais, sugere Wu, não. São, mesmo, máquinas de chamar a atenção para vários temas diferentes ao mesmo tempo.

Computadores poderiam ter sido diferentes. Esta é uma história que começa com uma disputa, em fins dos anos 1960. Havia dois partidos. A maioria dos cientistas investia na ideia de que computadores deveriam ser inteligentes. A corrida estava voltada para o desenvolvimento de inteligência artificial. Um grupo renegado na Universidade de Stanford, liderado por Douglas Engelbart, tinha uma proposta diferente. Computadores deviam ampliar a inteligência humana. Coisa do Norte da Califórnia daqueles anos: todos em busca de instrumentos para ampliar a percepção, a consciência, a inteligência. Podiam ser drogas, música, religiões orientais. Ou máquinas.

Há cheiro de livro novo no ar

Embora fosse inicialmente minoritário, o grupo de Engelbart venceu a corrida. Quando, nos anos 1980, os computadores gráficos começaram a se popularizar primeiro com o Macintosh, depois com o Windows, já eram máquinas voltadas para ajudar o usuário a ser criativo. Não para pensar por ele. Os passos finais para a criação do mundo atual vêm da última década do século 20. Primeiro o aumento de poder das máquinas possibilitou o surgimento da multitarefa. Ou seja, computadores que rodam mais de um programa ao mesmo tempo. Hoje são a praxe. Quinze anos atrás não eram. E, mais ou menos ao mesmo tempo, o surgimento da internet comercial.

Não foi de repente a mudança. Foi daquelas que acontecem muito aos poucos. Mas computadores, que eram máquinas nas quais podíamos nos abandonar concentrados, tornaram-se ferramentas que clamam por nossa atenção a toda hora. E o problema disso é que somos programados para sermos desatentos. É como nossos cérebros funcionam. Aquele ideal da trupe de Doug Engelbart foi traído. A máquina tem o potencial de ampliar nossa mente. Em geral nos atira numa contínua conversa de cafezinho enquanto tentamos produzir algo relevante. Nós, jornalistas habituados a cobrir tecnologia, somos encantados com a internet. A rede é uma promessa de possibilidades infinitas. Não raro, nos tornamos seus apologistas. Mas, ao mesmo tempo em que a comunicação digital abre portas, ela também modifica a maneira como trabalhamos e nos comunicamos. Amplia ao mesmo tempo em que distorce. Concentração, uma das artes mais difíceis de dominar para nós humanos, tornou-se a principal vítima.

Alguns autores são críticos conhecidos da rede, gente como Andrew Keen e Nicholas Carr. Wu é diferente, um pragmático. Não acredita na web utópica e, há algum tempo, sugere que ela não ficará fragmentada. Que um grupo pequeno de empresas vai dominá-la. Já fazia esse prognóstico antes de Facebook e Google tornarem-se as potências que são. Agora tem essa provocação nova. Há cheiro de livro novo no ar. Dessa vez, porém, é otimista. Acha que é possível desenharmos novas máquinas que resolvam o problema. Se, antes, reconhecermos que há um problema.

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Pedro Doria é colunista do Globo