Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Vem brincar comigo

Durante muito tempo o ato de brincar foi considerado coisa de criança, aquilo que os pequenos faziam quando se viam livres da interferência dos adultos. Opostas a “coisas sérias”, as brincadeiras não eram consideradas experiências válidas. O tempo empenhado nelas era, no máximo, uma forma de lazer.

No entanto, desde o começo do século 20, pedagogos, filósofos, psicólogos e outros estudiosos do aprendizado vêm percebendo que a brincadeira é um artifício cerebral de grande importância para o aprendizado de ideias e conceitos.

O jogo é fundamental para o desenvolvimento social, emocional, intelectual e físico. Ambiente de simulação e representação de papéis, nele o tempo acontece de forma desestruturada e interativa, dando a seus participantes um grande controle sobre elementos que, na vida cotidiana, seriam imprevisíveis.

Muita gente que despreza jogos não percebe que, ao entrar em debates políticos, questões de poder e estratégias de sedução, está jogando outro tipo de jogo, e, como os outros, tem regras claras e está aberto a intervenções.

Há mais de meio século, Sigmund Freud defendia que cada criança, ao brincar, se comportava como um artista ou um cientista. Ambos criam estruturas diferentes da realidade, em que os elementos do mundo são desativados ou reestruturados, ficando sujeitos à manipulação.

Está na hora de levar a brincadeira a sério. Hoje, tempos em que tanto se fala em inovação, cocriação e “design thinking”, o jogo se tornou pré-requisito profissional. É nele que se desenvolve o raciocínio sistêmico e multivariável que mais tarde será necessário para desenvolver e operar novos aplicativos e interfaces.

Impulso lúdico

O fluxo ininterrupto de informação do mundo digital faz com que seja preciso aprender o tempo todo, questionando e desafiando as velhas certezas. Equipamentos de ponta nos hospitais e na indústria são tão diferentes do velho computador-e-mouse que nem parecem ter a mesma origem. Seu comportamento é tão amigável que se torna irresistível chamá-los de brinquedões.

Se muita gente ainda tem preconceito com relação aos jogos é porque os videogames, como a internet e a informática, cresceram sob os nossos olhos. Como tios desligados, muitos ainda os veem como as crianças que um dia foram. Um Xbox One é tão diferente do fliperama em que se jogava “Pac-Man” quanto um Airbus A380 difere de um balão.

Muitos jogos têm roteiros primários, mas isso é culpa de roteiristas e do mercado. Não se pode comparar Akira Kurosawa a James Cameron.

Boa parte da internet e de sistemas como o Unix foram criados colaborativamente no horário livre de programadores, que levavam a atividade com uma dedicação de atleta profissional. APIs, impressoras 3D e circuitos como Arduino e Raspberry Pi criam uma nova geração de hackers que questionam as estruturas com suas tecnogambiarras.

O impulso lúdico é tão forte que vemos a criação de jogos até em lugares inesperados. Quem diria que, no Twitter, teriam destaque brincadeiras como Trending Topics, FollowFriday ou o uso do caractere #?

Há jogos por toda parte. De “Candy Crush” a “GTA”, passando por Foursquare, eles podem ser óbvios ou complexos, declarados ou intuitivos. Quem não consegue vê-los é porque não sabe brincar.

******

Luli Hadfahrer é colunista da Folha de S.Paulo