Quem frequenta o Facebook reconhece de imediato uma situação cada vez mais recorrente: alguém posta uma opinião sobre um tema em evidência e, nos comentários, as discordâncias vão ficando mais inflamadas, até que se completa o quadro: ninguém mais “ouve” ninguém – e alguns vociferam. Muitas vezes, a certa altura do bate-boca, há um que faz o diagnóstico: “Ih, virou Fla-Flu, essa conversa não vai chegar a lugar algum.” Esse tipo de debate (que mais lembra a palavra combate) é aquele em que os lados já entram em campo com opiniões formadas e irredutíveis, sem disposição para prestar atenção a qualquer argumento do “opositor” – daí o apelido de Fla-Flu.
– Isso acontece o tempo todo. As pessoas não querem ouvir, apenas convencer as outras – diz Renato Terra, diretor do longa “Fla x Flu – 40 minutos antes do nada”, que ganhou o prêmio do júri popular de melhor documentário no Festival do Rio deste ano e entrou em cartaz no último dia 25. – No Facebook, muitas vezes, tem dois lados de militantes que só falam e não ouvem. Fica um embate improdutivo em que cada um tenta convencer quem pensa diferente. No entanto, ninguém cogita mudar de opinião. No futebol, isso é saudável: o cara que muda de time é um traidor. Em outros assuntos, gera debates vazios e que acabam com as partes irritadas porque o outro não ouve.
Num momento em que cresce a incidência de palavras como maniqueísmo, simplismo e reducionismo para se referir a certos “debates” (entre aspas porque a primeira definição do termo no Aurélio é: “Troca de ideias em que se alegam razões pró ou contra, com vistas a uma conclusão”), o clima de Fla-Flu está mesmo no ar. O diretor do documentário dedicado ao clássico carioca que deu origem à expressão conta que fez questão de incluir no longa também essa abordagem, a subjetiva:
– No filme, a gente brinca com esse Fla-Flu de depoimentos com humor, inclusive gerando uma discussão a partir de interpretações diferentes para um mesmo fato. Flamenguistas dizem que o gol do Renato Gaúcho em 1995 foi com a mão. Em cima das mesmas imagens, torcedores do Fluminense dizem que foi com a barriga, o plexo e até mesmo o escudo. Nesse caso, é divertido não concordar. O futebol é sério, mas não deixa de ser uma brincadeira, permite distorcer os fatos para defender o time. Mas tem gente que leva isso ao pé da letra e distorce tudo só para confirmar que está certo.
Henrique Antoun, professor da Escola de Comunicação da UFRJ e integrante do Núcleo de Pesquisa em Tecnologia, Cultura e Subjetividade, enfatiza uma característica democrática (e, obviamente, positiva) da comunicação contemporânea: na internet, todo mundo pode expor a sua versão para cada história. E dá exemplos de expressões que descrevem comportamentos on-line.
– Na chamada “guerra em rede”, os diversos grupos disputam a primazia pela narrativa de um acontecimento. E é bom lembrar que estamos falando de um meio quente, que acirra a discussão. Tem uma expressão que resume isso, diz que, ali, todo mundo pode dar os seus “20 centavos de palpite”.
Opinião antes da informação
Palpite é uma expressão bem adequada para o tema, já que outra característica muito citada sobre esse tipo de debate é o “manifeste-se primeiro, informe-se depois” (ou, quem sabe, nunca). O psicanalista Luiz Fernando Gallego vê, apesar de a web ser um mundo de informações, certa opção pela superficialidade.
– Tem uma coisa do tempo atual, em que tudo é acelerado, não há muito espaço para reflexão – acredita o psicanalista, que também aponta a tendência ao conflito. – Como sou também crítico de cinema, acompanho discussões sobre filmes e me pergunto se a pessoa seria tão assertiva se estivesse falando com a outra olho no olho. Um diz: “Não gostei desse filme”, alguém discorda, e o primeiro, que talvez contemporizasse pessoalmente com um “Não que eu tenha achado péssimo…” e parasse por aí, acaba deixando naqueles comentários: “O filme é uma porcaria. Para gostar, só sendo uma besta quadrada, só quem não tem cultura nenhuma, nunca leu um livro na vida”. Por um lado, é até engraçado…
Também levando na esportiva, há poucos dias circulou no Facebook um meme sintomático. O desabafo bem-humorado constatava que existe um ditador dentro de cada amigo da rede social – e que, para não cortar relações com todo mundo e acabar solitário, a solução era: ter uma paciência sem fim.
Para Gallego, a rede social se tornou uma tribuna livre em que cada um fala o quer, dando a sua “preciosíssima opinião” para uma audiência que frequentemente nem está interessada nela. Segundo ele, o comportamento de se dirigir ao outro sem ouvir o que ele tem a dizer é uma demonstração do narcisismo descrito pela psicanálise.
Já em pesquisas de comunicação como as de Henrique Antoun, as diferentes categorias dos internautas que contribuem para o Fla-Flu na rede são catalogadas. Segundo o professor, são de quatro tipos os que mais chamam a atenção.
O primeiro é o ególatra: só existe ele, você pode dizer o que quiser, que lá vem ele em seguida com ele mesmo, totalmente egocentrado.
O segundo é o palhaço: está ali, acima de tudo, para fazer graça. E, na primeira chance, vai mostrar a que veio: fazer a sua piadinha.
O terceiro também está no jogo para se divertir, mas faz isso insultando, vive do escárnio e provavelmente respeita menos os limites do que qualquer outro: é o troll.
Por último, o sabichão: domina o assunto e não tem nada mais com que possa se informar.
No Fla-Flu de verdade, evitar o desequilíbrio é uma preocupação (o que bem poderia servir de exemplo para o virtual):
– A gestão de um clube de futebol deve ser feita por pessoas movidas pela paixão, mas totalmente gerenciadas pela razão. Adotamos esse lema desde que fundamos a ANTC, a Associação Nacional Tricolor de Coração – diz Alexey Dantas, vice-presidente de Relações Institucionais do Fluminense.
O presidente do Flamengo, Eduardo Bandeira de Mello, também prega a paz:
– O Fla-Flu é uma das maiores rivalidades do futebol brasileiro e cada lado vai buscar a razão em qualquer discussão, mas sempre com respeito e cordialidade.
Os torcedores também têm a impressão de que está mais fácil conciliar o que vai dentro do gramado.
– Eu entrei em duas discussões no Facebook, a do Mais Médicos e a da proibição das vans. É pior do que Fla-Flu: não importa o que diga, você não vai fazer o outro mudar de opinião, assim como não vai convencê-lo a mudar de time – conclui, em pleno Maracanã, Pollyana Azevedo, que diz que as pessoas exageram na rivalidade na rede, o que não acontece entre ela, tricolor, e o namorado, flamenguista, nem quando os dois vão juntos ver um clássico entre seus times (eles torcem lado a lado na arquibancada mista).
Entre os temas que polarizaram opiniões ultimamente, também chamaram a atenção o caso dos ativistas que tiraram os beagles do Instituto Royal, em São Paulo, e a pendenga envolvendo o Procure Saber entre direito a privacidade e censura a biografias, além de diferentes aspectos das manifestações que acontecem no país. No campo dos debates nas redes sociais, os advogados Christiano Mourão e Rafael Queiroz chamam a atenção para o que deve acompanhar esse território democrático: a responsabilidade.
– É comum ver análises precipitadas, rasas, feitas sem cuidado ou informações – diz Queiroz.
Mourão avisa que esses julgamentos precipitados podem render desdobramentos de acordo com as leis:
– As pessoas acabam transformando as redes sociais em mesa de bar, condenando sem critério. Quem for alvo de uma dessas sentenças equivocadas pode buscar reparação civil.
O psicanalista Jurandir Freire Costa pensa parecido com esse raciocínio do boteco. Para ele, o que o Facebook fez foi apenas dar visibilidade a um comportamento demasiadamente humano.
– O que existe há muito tempo ficou explícito no Facebook: as pessoas não se ouvem. É a dificuldade de comunicação humana. A gente não escuta…
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Claudia Amorim, do Globo