Em 1990, motoristas de todo o país foram obrigados a substituir as placas amarelas de seus veículos pelas brancas que valem até hoje, com três letras e quatro números. Só assim os departamentos de trânsito puderam continuar registrando a frota em expansão. Em 2012, dois anos depois de o número de celulares ter superado a quantidade de habitantes, a telefonia móvel começou a ganhar um nono dígito.
Agora chegou a vez da internet: o estoque de combinações disponíveis na América Latina para acesso simultâneo à rede tem apenas mais seis meses de duração. O esgotamento dos protocolos de IP, como são conhecidos no jargão do setor, deverá ocorrer em torno de maio de 2014. A previsão é do órgão responsável pela administração dos registros de internet no Brasil.
Funciona da seguinte forma: cada vez que um usuário se conecta à rede, a provedora de internet lhe reserva um endereço para identificá-lo durante todo o tempo de navegação. O IPv4, sistema mais usado hoje na internet, permite 4,2 bilhões de combinações em todo o mundo, as quais são distribuídas por cinco regiões. Metade dos endereços havia sido alocada até 2006. Desde então, a quantidade remanescente foi sendo alocada em ritmo crescente nos últimos anos. Na Ásia e na Europa, o estoque de endereços já terminou.
O esgotamento das combinações na região da América Latina, que engloba o Brasil, é um processo conhecido e aguardado no setor. A novidade é a velocidade em que isso ocorreu. Previa-se o término do estoque disponível em 2015 – talvez no fim de 2014.
Com a expansão na venda de computadores e smartphones, o prazo se encurtou. Pesa ainda o fato de que uma quantidade cada vez maior de usuários fica ininterruptamente conectada durante quase todo o dia. "A nossa estimativa, para a América Latina como um todo, é entre maio e junho de 2014", afirma Ricardo Patara, gerente de recursos de numeração do NIC.br, a entidade responsável pelo registro dos domínios no Brasil. "A internet tornou-se vítima de seu próprio sucesso."
Passos lentos
Não se trata de uma contagem regressiva para o colapso da rede nos países da região, segundo esclarece Patara. Quando o estoque realmente acabar, não significa que haverá limites à conexão de novos usuários. As provedoras poderão "quebrar" o mesmo protocolo de IP para uso de mais de um usuário simultaneamente.
Mas isso, adverte o especialista do NIC.br, é uma medida paliativa e pode ter diversos efeitos colaterais. "Alguns aplicativos podem não funcionar ou ficar lentos", diz Patara. Outro ponto de interrogação é com a rastreabilidade. Hoje, quando se detecta uma tentativa de fraude na movimentação eletrônica de contas bancárias, as instituições financeiras conseguem identificar, em parceria com os provedores, de onde partiu o golpe. Se o mesmo endereço de IP é dividido entre mais de um usuário, a tarefa fica mais complicada, embora não totalmente impossível.
Outra medida paliativa é a criação de uma espécie de "mercado paralelo" de endereços. Na Ásia, provedores que ainda têm combinações disponíveis foram autorizados a vender "lotes" de protocolos para outras empresas.
Para resolver de vez o gargalo, a solução é acelerar a implementação de um novo sistema operacional que torna praticamente infinita a possibilidade de combinações. O IPv4 opera com base em endereços formados por quatro blocos de oito dígitos cada. Seu sucessor, o IPv6, permite o registro de oito blocos de 16 dígitos cada. Para ilustrar o que isso significa, a consultoria Deloitte fez uma comparação inusitada: se todos os números do atual sistema fossem uma gota de água, os endereços do IPv6 formariam os oceanos de seis planetas Terra.
A transição, no entanto, caminha a passos lentos. "No Brasil, estamos na faixa de 1,5% a 2% de implementação", diz Patara. De acordo com ele, a infraestrutura de rede já adotou o suporte necessário para uso do IPv6. "O que está dificultando é a ponta. A decisão dos provedores, de certa forma, tem sido a de postergar o quanto podem. É um pensamento geral, não só no Brasil", afirma.
A Suíça, país mais avançado do mundo na migração de sistemas, só tinha 10,1% dos acessos feitos pelo IPv6 em junho de 2013.
***
Troca de sistema depende de incentivo, mostra estudo
Sem incentivos, a implantação de um novo sistema operacional que possa resolver definitivamente o gargalo de combinações disponíveis na internet dificilmente se resolverá no Brasil, segundo um estudo abrangente recém-publicado sobre o assunto. O problema é que não basta a migração dos usuários para o sistema IPv6. Provedores e grandes geradoras de conteúdo precisam se adaptar da mesma forma.
"Enquanto uma parcela expressiva e útil dos serviços, conteúdos e aplicações disponíveis na internet não for adaptada para que terminais IPv6 possam acessá-la, será difícil ver a demanda pela nova versão crescer no ritmo desejado", diz o economista e consultor legislativo do Senado, Igor Vilas Boas de Freitas, recém-indicado pela presidente Dilma Rousseff para o cargo de conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). Ele assina o estudo com o economista e advogado Andrey Vilas Boas de Freitas.
"Provedores do porte do Google, Yahoo e Microsoft já investiram para preparar seus servidores para o IPv6. Mas se forem auditados, por exemplo, os serviços de governo eletrônico oferecidos no Brasil, talvez nem a Receita Federal esteja preparada para receber as declarações de Imposto de Renda de terminais IPv6. Sem benefícios, a migração não ocorrerá espontaneamente", diz o estudo.
Ricardo Patara, do NIC.br, diz que muitos provedores têm aproveitado a troca de modens nas residências e escritórios – com a venda de pacotes mais abrangentes – para fazer a migração de sistemas. Na Europa, governos determinaram que PCs adquiridos pelo poder público deverão necessariamente contar com o IPv6.
Pataro reconhece que o caráter democrático da web dificulta a adaptação e que um simples decreto oficial não resolve a questão. "É um ambiente autorregulável e nenhum governo pode obrigar os usuários ou os provedores a ter o IPv6 até determinada data." (D.R.)
******
Daniel Rittner, do Valor Econômico