Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Após a violência virtual

Na semana passada [retrasada], a história de Júlia Rebeca, uma jovem piauiense de 16 anos, se espalhou pelo Brasil. Um vídeo em que a moça se relacionava com uma amiga e um amigo foi divulgado primeiro via WhatsApp, a rede que substitui o SMS para smartphones, depois pela web. Perdida, cometeu suicídio antes mesmo que os pais soubessem. “Todo adolescente tem o direito de ser adolescente”, disse sua mãe ao último Fantástico. “Eles são inconsequentes mesmo.” E o momento em que ela começava a experimentar com as possibilidades do corpo terminou em tragédia.

Há outra história circulando. Igual, porém distinta.

É a de Thamiris Sato, aluna da tradicional FFLCH da USP, onde estuda Letras. No mesmo domingo, ela contou em seu perfil do Facebook de como, desde outubro, um ex-namorado a vem ameaçando. Divulgou fotografias. Invadiu seu correio eletrônico. Poderia ter-se encolhido em casa. Muitas vezes, a vontade é essa mesmo: sumir do mundo. Seguiu o caminho inverso. Tornou-a pública. Pôs seu rosto, assinou o nome. Prestou queixa na Delegacia da Mulher. A família do rapaz a contestou com agressividade. Professores da faculdade a abraçaram, o grupo feminista Marias Baderna divulgou nota, o Comitê de Ética da USP abriu processo para investigar o caso.

O que separa a história de Júlia e a de Thamiris é temperamento, idade e ambiente social. A violência é a mesma e dor não se mede. Os pais de Júlia sequer souberam do vídeo, mas a menina estava tão aterrorizada que não viu outra saída. Não chegou a saber que sua mãe entendia tudo de adolescência. E, talvez, no interior do Piauí, a perspectiva de ver sua intimidade tornada pública fosse acachapante. De internet, afinal, Júlia entendia. Sabia que uma vez que o vídeo passa de celular em celular, logo ganha sites, de lá o mundo. O efeito de rede é inexorável.

Nova forma de violência

Um pouco mais velha, em um dos campi mais cosmopolitas do país, Thamiris percebeu outra coisa. Que não fez nada de errado. Que tem o direito de fazer o que quiser com o próprio corpo. Escroque, afinal, é o outro. É preciso coragem para virar a mesa como ela fez. De ir publicamente relatar o que lhe ocorreu e como. Falar da dor, principalmente do medo. Ela provavelmente já desconfiava que receberia apoio. Já sabia disso, Júlia não soube.

Pornografia da vingança, revenge porn em inglês, é como chamamos o ato de divulgar imagens íntimas para se vingar. Não é apenas misógino e covarde. É reflexo de uma cultura na qual muita gente ainda desconfia que mulheres, quando sentem prazer, têm algo de errado. Não é um fenômeno novo no mundo, tampouco no Brasil. O que há de novo é que, nos últimos dois meses, os casos estão ganhando maior evidência.

Falar abertamente desta nova forma de violência sexual é bom porque educa. Diminui a possibilidade de que outras meninas, jovens e perdidas, percam repentinamente sua perspectiva. Há caminho legal no Brasil. A Lei Maria da Penha cobre tais casos e as delegacias especializadas sabem como proceder.

Marias Baderna não estão sozinhas

Dizer não faça não é solução. No mundo em que o celular tira boas fotos e adolescentes seguirão descobrindo o barato da sedução, fotografias serão tiradas. Um dos aplicativos mais badalados do Vale do Silício no momento, para iPhone e Android, é o Snapchat. Na semana passada, o Facebook ofereceu US$3 bilhões por ele, o Google retornou com oferta de meio bilhão a mais. É cacife alto para o Vale, o app do momento. Muito pouca empresa é disputada simultaneamente por dois gigantes. E a trupe do Snapchat está tão convicta de que tem um tesouro nas mãos que rejeitou o dinheiro. Seguirá, por enquanto, com as próprias pernas.

Snapchat é uma das soluções possíveis. A moça envia fotos para o namorado, ele as recebe. Mas há um truque: após intervalo entre 1 e 10 segundos, a imagem se apaga automaticamente. Quem envia decide quanto tempo. Se alguém do outro lado tentar capturar a tela, o remetente é imediatamente informado.

Até que o mundo fique melhor, não custa lembrar às Marias Baderna do mundo de que não estão sozinhas. Thamiris o sabe.

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Pedro Doria é colunista do Globo