Monday, 23 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Covarde e ousado

A descrição é do próprio Jeff Bezos. Ao contratar um veterano do exército para trabalhar na Amazon, ele disse: “Fisicamente sou um covarde (chicken); mentalmente sou ousado.” Imagine se Jeff Bezos tivesse levado adiante sua ideia de batizar a companhia que fundou há 20 anos de Relentless (implacável). “Vamos agora ouvir o CEO da Implacável.com”, convocaria o líder da comissão do Senado em Washington, que um dia há de plantar o fundador da Amazon numa cadeira e ouvir sua risada nervosa numa investigação anti-truste.

Mas não é preciso ter título explícito para confirmar a intenção do nome que não emplacou, como fica claro no livro fascinante de Brad Stone, The Everything Store (A Loja de Tudo). A narrativa sobre a emergência do gigante do comércio online, que chega a 200 milhões de consumidores, acaba de ser escolhida Livro de Negócios do Ano pelo Financial Times. O que torna a resenha negativa escrita por Mackenzie Bezos no site da Amazon (uma estrela, de um total de cinco) ainda mais embaraçosa. Sim, Mackenzie é a senhora Bezos. E publica seus romances numa editora tradicional, não na fundada pelo marido.

O gênio analítico de Bezos o coloca entre seus pares, como Bill Gates e Steve Jobs. E, como no caso de Gates e Jobs, é o elefante que, se um dia sair da sala, traz uma interrogação para o futuro da Amazon. No momento, a companhia com vendas de US $180 bilhões, 90 mil funcionários (mais 70 mil são contratados temporariamente para o fim do ano) vai continuar a crescer.

Vender tudo em toda parte

O livro de Brad Stone foi alterado no final quando, em agosto, Bezos comprou o Washington Post da família Graham por US$ 250 milhões. Mas, ao digerir a decisão, Stone começou a ver mais coerência num Bezos dono de jornal. Lembra que ele é um leitor voraz e defensor da palavra escrita, ainda que inimigo de editoras de livros e livrarias físicas. As reuniões na Amazon começam com a leitura silenciosa de um memorando de seis páginas. Lembra que Bezos é consumido pelo fascínio com a ruptura dos modelos tradicionais de negócios e, se há uma indústria tradicional que sofre com a economia digital, é a que leva a você, leitor, esta coluna.

E, não sejamos ingênuos, o empresário de ideias descritas como vagamente libertárias, um ferrenho inimigo de limites, como a cobrança de impostos, acaba de adquirir uma influência política poderosa. De sua mansão de 2.700 m² no Lago Washington, em Seattle, Bezos pode orquestrar um exército de lobistas que lutaram, estado por estado, para impedir a cobrança de impostos sobre vendas online. Pode destruir pequenos comerciantes, ao bloquear suas lojas do site da Amazon, em Estados que não dão refresco fiscal como a Califórnia e Nova York, para mostrar a vizinhos mais pobres o poder de sua fúria competitiva. Mas, ser dono do Washington Post na capital de uma indústria só, a política, é um novo estágio de influência.

A surpresa da compra do Post não impede Stone de fazer suas previsões, na conclusão de The Everything Store. Ele deixa clara a sua admiração pela companhia “mais sedutora que já existiu”, embora, ao longo da narrativa, possamos notar a diferença entre respeitar um empresário e gostar dele. O objetivo de Jeff Bezos é vender tudo em toda parte. Stone prevê que Bezos vai ser dono de uma frota de caminhões para eliminar o último obstáculo independente ao sistema de entregas. Vai estender a venda de alimentos além de algumas cidades da Costa Oeste, enfrentando o Golias Walmart, de quem tomou tantos executivos que acabou sendo processado pelo concorrente. Vai se envolver em telefonia celular, já se envolve em produção e transmissão de TV.

Balcão planetário

Um dos serviços prestados por Brad Stone é desmistificar a lenda criada por Bezos sobre sua paciência (e a de seus acionistas) para aceitar prejuízos e lucros baixos por ter o foco apenas no consumidor. A Amazon mantém uma vigilância implacável sobre qualquer startup que demonstre o menor talento de cruzar seu caminho no futuro. Um caso famoso é o da bem sucedida Diapers.com, que vendia fraldas descartáveis online e foi colocada de joelhos até capitular e ser comprada por Bezos. Quando a Zappos.com, especializada em venda de sapatos e roupas, começou a dar atenção especial aos consumidores, recebeu o mesmo tratamento, que pode ser ilustrado com um desses filmes de natureza na África, em que a hiena mastiga partes da zebra ainda viva. A lealdade do consumidor, muito mais do que sua satisfação, move a Amazon. Uma lealdade conquistada com voracidade napoleônica.

É mais fácil se opor às condições das fábricas chinesas de iPads da Apple do que às condições desumanas nos depósitos da Amazon e corrigidas graças à reportagem de um pequeno jornal de papel na Pensilvânia. A longo prazo, as sociedades hão de examinar a ideia de que uma transação comercial existe de forma abstrata. E de que para comprar tudo por preços que não remuneram a produção, compensa destruir indústrias inteiras até sobrar um só balcão planetário de vendas. Por enquanto, a refeição de Jeff Bezos está apenas começando.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York