Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Encruzilhada perversa

Não posso me dizer surpreendida com os suicídios de duas adolescentes, no Piauí e no Rio Grande do Sul, vítimas do que os americanos batizaram de revenge porn, a vingança por exposição da intimidade sexual.

Desde que comecei a observar daqui o fenômeno da mídia social no começo da década passada, a escala da adesão brasileira a todas as formas de exposição falsamente definidas como “compartilhar” me assustou.

Como disse a hipócrita Alexandra Chong, criadora do aplicativo Lulu, que dá notas a homens, o Brasil era o mercado óbvio para o primeiro lançamento do Lulu fora dos EUA.

Ainda que as considere mortes anunciadas, o choque não é menor. A falta de surpresa vem da leitura sobre o grande número de suicídios provocados por bullying on-line nos Estados Unidos, nos últimos anos. Fico sabendo que um site, Ask.fm, mais popular na Europa do que aqui, registrou nove suicídios de adolescentes entre seus 65 milhões de usuários em 2012. A brutalidade dos comentários neste site, que não deve ser muito diferente de tantos outros, é bastante para alguém pensar duas vezes antes de colocar uma nova vida no mundo.

Falta de intimidade

A exposição da vida íntima em escala exponencial se dá numa confluência perversa. É o encontro da facilidade do ato de clicar, da velocidade digital e do falso senso de proteção das consequências no universo virtual, especialmente para adolescentes tão onipotentes quanto vulneráveis.

Não é a vingança que mais me assusta. A vingança não foi inventada por um aplicativo e a tecnologia, da bomba nuclear ao Lulu, depende do uso que fazemos dela.

O suicídio de adolescentes é a ponta de um iceberg de erosão da intimidade num nível que parece atender parte da definição de psicose, se houvesse algo como uma patologia coletiva. Por que continuam repetindo casualmente que os adolescentes criados on-line não têm expectativa de privacidade? A abolição da privacidade é, para começo de conversa, uma patologia, não uma cortesia do Facebook.

É natural uma tragédia como a morte de Giana e Júlia provocar a busca por culpados que nos coloque a salvo da responsabilidade. Uma sociedade em que jovens preferem morrer é uma sociedade em que os adultos fracassaram – e não me refiro aos pais das meninas mortas.

A tragédia desses suicídios me trouxe de volta memórias pré digitais mas não menos assustadoras, da incerteza de monitorar adolescentes em Nova York. Não duvido que ainda vou ouvir mais histórias de momentos que foram escondidos de mim, decisões imaturas que poderiam ter me trazido o horror de abrir a porta do quarto ao lado ao meu, numa madrugada, e descobrir a cama vazia.

Suspeito que a falta de intimidade, agora se revelando devastadora para tantos jovens, tem parte de sua origem em outra falta de intimidade. Uma intimidade da qual lutei para não abrir mão e que me tornou uma das mães menos populares numa certa escola de segundo grau. Lembro do olhar de desdém de outras mães, mulheres que se achavam a quintessência do cool. Proteger um filho não é detectar a direção do vento e aderir.

Terreno baldio

Algo aconteceu com a contracultura familiar que fez dos pais da minha geração tão diferentes dos da geração dos meus pais. Acho que confundiram o relaxamento da hierarquia rígida como o relaxamento da responsabilidade; dizer sim com expressar afeto; compreensão com cumplicidade. Sim, a geração dos meus pais viveu num mundo em que o dia de trabalho era mais curto, em que havia refeições em volta da mesa e não cada membro da família a sós com sua tela.

Mas não consigo separar o abandono dos adolescentes à rotina virtual, com suas armadilhas de crueldade, a um abandono anterior. O conteúdo repugnante de websites frequentados pelos nossos filhos não foi inventado por um algoritmo. Ele brotou no terreno baldio onde a intimidade não cultivada facilitou a ocupação.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S.Paulo, em Nova York