A placa afixada à entrada de um lounge perto da badalada Union Square, em São Francisco, Estados Unidos, dava o tom do evento que aconteceria ali naquela noite: “Você está entrando em uma área livre de tecnologias e aparelhos eletrônicos. Por favor, não use seu celular dentro deste espaço. A utilização de dispositivos móveis sem fio é proibida.”
Os convidados já sabiam das condições, é claro. Ironicamente, dado o caráter do evento, já tinham se espalhado pelo Facebook e outras redes sociais comentários sobre a Device Free Drinks (coquetel livre de aparelhos), festa anunciada como uma ocasião para se “desfrutar de algumas horas desconectadas”. Mesmo assim, pedir aos 250 convidados para deixar as amarras digitais do lado de fora exigiu algum grau de persuasão. “Você está pronto?”, indagou a hostess a cada um que chegava. “Eu não consigo abandoná-lo sequer por 30 segundos!”, relutou Katie Kimball, 28 anos, que mora em Nova York e estava a passeio na cidade. Depois da cena, Kimball e uma amiga foram incentivadas a pescar algumas tiras de papel de um frasco contendo frases quebra-gelo nativas do mundo analógico, como “Qual é o cheiro da sua avó?”
O bar do lounge também estava repleto de distrações analógicas, como jogos de tabuleiro. Sua função era impedir que os viciados digitais desertassem. Ao lado de quatro máquinas de escrever Smith Corona estava uma jovem que escrevera no pescoço a frase “Pergunte-me coisas sobre máquinas de escrever! Eu posso respondê-las… talvez.”
Usuários checam celulares quando não estão tocando
Caitlin Keller, 28 anos, que trabalha no atendimento ao cliente em uma startup de tecnologia, reuniu toda sua destreza manual para registrar seu sofrimento numa das Smith Corona: “Por que eles levaram meu telefone?!” “Os primeiros 20 minutos são difíceis”, admitiu. “Você quer ver o que seus amigos estão fazendo, ver se alguém entrou em contato com você ou pelo menos ter o aparelho por perto. Mas depois você se sente livre!”
Em outro canto, duas mulheres esperavam sua vez para ganhar retratos feitos à mão por uma dupla de artistas. “Estamos aproveitando o momento!”, disse uma delas orgulhosa, para logo depois trair suas intenções malignas: “Logo que sair daqui vou colocar tudo no Instagram, com certeza!”
Como pedaço importante do Vale do Silício, San Francisco é habitada por aficionados da tecnologia, mas não seria estranho se a Device Free Drinks acontecesse em qualquer outra cidade americana. Segundo pesquisa realizada pelo Pew Research Center, 67% dos usuários de celular no país checam seus aparelhos mesmo quando eles não estão tocando.
Um retiro para desintoxicação tecnológica
A festa foi ideia de Levi Felix, que, aos 28 anos, se autointitula um viciado em tecnologia em estágio de recuperação. Quatro anos atrás, Felix morava em Los Angeles e trabalha 70 horas por semana para uma startup. Seu estilo de vida tornara-se um clichê desse universo: lavanderia pela manhã, comida tailandesa no jantar e ping-pong no escritório; o laptop ficava debaixo do travesseiro enquanto ele dormia.
Mas sua visão ultracafeinada sobre como “mudar o mundo” começava a cobrar um preço. Em 2009, horas antes de participar da popular conferência South by Southwest, Felix foi levado às pressas para o hospital. Seu nível sanguíneo estava 70% abaixo do normal. “O médico disse: ‘Você está se matando, precisa de repouso’”, contou.
E assim ele fez. Após dois anos viajando com a namorada por lugares onde praticamente inexiste tecnologia (entre eles uma ilha no Camboja), Felix voltou aos EUA encorajando os amigos a, por exemplo, ignorar os celulares durante o jantar. Um amigo que era diretor no MySpace sugeriu, então, que ele abrisse um retiro que trouxesse a desintoxicação tecnológica aos americanos.
Lições do retiro
No meio deste ano, o casal começou a organizar retiros de quatro dias, chamados de Detox Digital e realizados na região Norte da Califórnia. Os participantes eram obrigados a entregar todos os dispositivos e eram submetidos a uma rotina de aulas de ioga, meditação e culinária saudável. “Nós percebemos que as pessoas precisam de permissão para ficar totalmente afastadas e reformatar seus próprios discos rígidos pessoais”, afirmou.
Muitos participantes encerravam o retiro com a sensação de transformação. Jonathan Lally, de 28 anos, que foi a um Detox Digital depois de deixar um emprego na Google, contou que parou de levar o smartphone para o quarto à noite, passando a acordar ao som de um despertador antigo. “Quem quiser me encontrar depois das 21h precisa ligar duas vezes no intervalo de dois minutos, só assim o telefone toca”, disse.
O retiro também fez de Lally um interlocutor mais atencioso durante contatos em pessoa: “Se você estivesse falando comigo há seis meses, eu provavelmente teria sacado o celular umas 30 vezes durante a conversa.” Reconhecendo que nem todo mundo consegue se livrar completamente da tecnologia, Felix pensou em levar algumas lições do retiro para um bar no meio da cidade. Assim nasceu, no mês passado, a primeira Device Free Drinks.
Sintomas de abstinência
Felix espera que outros restaurantes e cafés criem áreas onde o uso de tecnologia seja proibido – já imaginou um mundo onde viciados em Instagram tenham que postar suas fotos dos mesmos cercadinhos externos onde os fumantes são segregados? “Estamos ainda na infância da descoberta dos efeitos da tecnologia em nossos cérebros e na sociedade, mas nenhuma regra foi estabelecida ainda. Cabe a nós defini-las”, explicou Felix. “Eu sou um geek, não um ludita. Amo a tecnologia que nos conecta e leva nossa civilização a um outro patamar, mas temos que aprender a usá-la, não deixá-la que ela nos use.”
De volta à Device Free Drink, um jogo de Batalha Naval à luz de velas prendia a atenção de dois amigos na faixa dos 20 e poucos anos, enquanto alguns homens flertavam com garotas usando as frases quebra-gelo. A certa hora – quem poderia cravar o horário exato sem celulares por perto? – Kimball, nossa amiga de Nova York, estava de volta ao balcão de entrada para mexer em seu aparelho. Ela precisava de uma dose digital. “Preciso falar com alguém em Nova York que está indo agora para a cama!”, justificou. “Foi bom, resisti por uma hora.”
Outros foram mais perseverantes. Clarence Johnson, de 38 anos, que trabalha com modelagem de jogos 3D, disse que foi muito confortável poder segurar um coquetel com a mão que geralmente reservava para o celular. Mas, tão logo recuperavam seus smartphones, os convidados se viam absorvidos pelas telinhas antes mesmo de cruzar a saída. “Posso dizer que testemunhei sintomas claros de abstinência”, disse Jana Kantor, que se ofereceu para tomar conta dos aparelhos na entrada.