Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

É outra a web que justifica seu preço

Thomas Edison ficou conhecido como o inventor da lâmpada elétrica, mas em um artigo intitulado “Thinking”, publicado pela Harvard Business Review, o designer americano Tim Brown lembra que a lâmpada era apenas parte do sistema de geração e transmissão de energia concebido pelo inventor. Sem esse sistema mais amplo, argumenta Brown, a lâmpada seria pouco mais que um truque de ilusionismo.

O artigo, publicado em 2008, trata de inovação – não de internet –, mas seus fundamentos podem ajudar a explicar por que a ideia de que tudo na web tem de ser gratuito vem sendo colocada em xeque, com exemplos práticos de que é possível, sim, cobrar por serviços online e ser bem-sucedido com essa abordagem.

Criar um sistema, como fez Edison no século 19 permanece o xis da questão na internet do século 21. Tome-se o exemplo do iTunes. O programa não é o melhor software de música do mundo, mas foi capaz de transformar a Apple na maior varejista do setor. Por quê? O software é parte de um sistema maior. Há uma loja online de música e filmes (que também se chama iTunes), um sistema de pagamento eficiente e fácil de usar, uma variedade de dispositivos compatíveis (iPhone, iPad, iPod, PCs e Macs) e um serviço (o iCloud) que permite ao consumidor armazenar o que comprou na web para ver o que quiser, quando quiser, no aparelho que quiser.

A Netflix segue um caminho semelhante na transmissão de vídeos. Quando foi criada, em 1997, a empresa disputava espaço com a hoje desaparecida BlockBuster, entregando DVDs de filmes na casa dos clientes. Mais tarde, iniciou a luta para fixar entre os consumidores o hábito de ver vídeos on-line. Venceu a guerra, enterrando a tradição de ir à videolocadora. Agora, com cerca de 40 milhões de assinantes no mundo, está intensificando a estratégia de criar conteúdo próprio. Em vez de ser apenas um canal de transmissão das produções de terceiros – o que cria uma dependência perigosa – a Netflix quer aumentar seu papel na cadeia de entretenimento. A ideia, novamente, é estabelecer um sistema amplo e coeso.

Essa concepção estrutural ou sistêmica não é o único ponto a observar na construção de modelos de negócio pagos na internet. As mudanças recentes na própria natureza da web sugerem que há oportunidades que só agora começam a ser exploradas.

Prejuízo do YouTube é de quase meio bilhão de dólares

A primeira fase da internet, marcada pelos browsers – os programas de navegação na web –, consagrou o acesso gratuito, mesmo quando isso significava aderir a sites ilegais de compartilhamento de conteúdo. A segunda etapa da internet é diferente. Na era móvel, quando o acesso é feito principalmente por smartphones e tablets, o domínio é dos aplicativos, não dos browsers. E isso muda muita coisa.

No browser, o usuário entra na internet e faz a pesquisa sobre um tema. Recebe uma lista de sugestões, que praticamente não faz distinção entre as páginas sugeridas. O usuário entra em uma delas – se o site é pago, migra para o próximo, até achar o que procura de graça. Não faz muita diferença quem é o autor da informação. Para os defensores mais radicais do modelo gratuito, isso é o suficiente para decretar a impossibilidade de cobrar na web. O argumento soa como uma ameaça: quem cobra, mais cedo ou mais tarde, perde o cliente.

Os dispositivos móveis remodelaram a rota de busca da informação. Com o rápido crescimento das vendas de celulares e tablets, os grandes jornais e revistas se apressaram em criar seus próprios aplicativos de notícia. Com isso, o usuário se sente estimulado a buscar as notícias de uma fonte que já conhece, como os jornais e as revistas estabelecidos no mundo físico. Para o leitor mais exigente, a questão não é ler sobre a crise na Síria, por exemplo, mas saber o que uma publicação de prestígio, como o jornal Financial Times ou a revista The Economist, pensa sobre o assunto.

Na prática, a internet dos smartphones e aplicativos devolve, ao menos parcialmente, o poder e a influência que os meios de comunicação tradicionais tinham anteriormente, sob a promessa de entregar uma informação paga, é verdade, porém mais relevante e confiável.

A Wikipedia, a enciclopédia gratuita criada e aprimorada pelos próprios leitores, tornou-se uma das mais importantes fontes de informação on-line, mas não raro o usuário encontra avisos sobre a falta de fundamentos de um verbete, ou a parcialidade do autor de um texto. Uma sugestão para o leitor em dúvida é consultar a centenária Encyclopaedia Britannica, que abandonou os volumes em papel para se concentrar em um serviço on-line, que custa US$ 14,99 por ano. É o exemplo de que um serviço pago – oferecido por uma marca tradicional e de reputação – pode conviver com outro gratuito, amplo, mas cuja imprecisão nem sempre atende aos requisitos dos usuários.

O dilema gratuito versus pago também envolve uma questão técnica, pouco visível para o usuário, mas nem por isso menos importante. Ao baixar um filme, música ou livro com um par de cliques, o consumidor nem desconfia da capacidade de infraestrutura exigida para garantir essa comodidade. A Netflix já seria responsável por cerca de um terço do downstream (o fluxo de dados do provedor de um serviço na internet para os dispositivos do usuário, o contrário do upstream) na América do Norte.

A preocupação dos fornecedores de software e serviços é tanta que companhias de tecnologia como Microsoft e Amazon têm investido fortemente para criar sua própria infraestrutura, em especial centros de dados. O Google detém 100 mil milhas de cabos de fibra óptica nos Estados Unidos – uma rede maior que a da operadora Sprint, de 40 mil milhas – informou recentemente o The Wall Street Journal.

Tudo isso – redes de fibras ópticas, centros de dados, servidores etc. – tem custo. Parece óbvio, mas a questão está no centro de um debate polêmico. Em 2009, Chris Anderson, então editor da respeitada revista Wired, invocou a Lei de Moore para defender a ideia de que o custo de um bem digital poderia chegar perto do zero, em seu livro Free. Em 1965, Gordon Moore, cofundador da Intel, previu que o número de transistores em um chip (e, consequentemente, sua capacidade de processamento) dobraria a cada dois anos. Mais tarde, o professor Carver Mead formulou outro princípio. Se o número de transistores dobra, sem elevação do custo, então é por que o custo cai pela metade no mesmo prazo.

Anderson usou esses princípios para afirmar que a redução contínua no preço dos chips, associada à queda nos valores das conexões de banda larga e armazenagem de dados, acabariam por derrubar o custo de um bem digital para perto de zero. Com isso, as empresas não precisariam mais cobrar por seus produtos digitais (ou, pelo menos, por todos eles). Em vez disso, sugere, poderiam oferecê-los de graça, com a contrapartida de que isso atrairia um número de consumidores incomparavelmente maior.

O problema nessa equação, como observou o colunista Malcolm Gladwell na revista The New Yorker, é exatamente este: a multiplicação de usuários atraídos pelo apelo do gratuito faz com que mesmo um custo unitário próximo de zero ganhe proporções monstruosas à medida que mais e mais pessoas adotam um serviço.

Tome-se o caso do YouTube, o popular serviço de compartilhamento de vídeo do Google. O site reúne mais de 1 bilhão de usuários por mês, que veem e divulgam seus próprios vídeos sem pagar nada. Mais de metade da capacidade de rede do Google seria consumida pelo serviço de vídeo, segundo reportagem publicada pelo The Wall Street Journal no ano passado. É difícil saber qual o desempenho financeiro do YouTube, porque o Google não divulga resultados por unidade de negócio, mas em 2009, ano do lançamento do livro de Anderson, o Crédit Suisse estimava que o YouTube daria um prejuízo de quase meio bilhão de dólares – e o movimento, na época, era bem menor que o de hoje.

Não existe almoço grátis

O YouTube foi recebido, a princípio, como uma revolução. Alguns abraçaram a ideia de que o site dava às pessoas comuns o poder de, finalmente, ser criadoras de conteúdo, em vez de meras consumidoras. Alguns vídeos do site são, de fato, curiosos, úteis ou engraçados. Vários tornaram-se sucessos inesperados – quem resiste, por exemplo, aos garotinhos do vídeo (já antigo) Charlie bit my finger?

O crescimento da Netflix mostra, no entanto, que o YouTube criou um fenômeno novo, mas não colocou a escanteio a produção profissional. Ao contrário, séries e filmes de prestígio de canais pagos, como HBO, AMC e Showtime, têm feito tanto sucesso que se fala de uma era de ouro para a TV nos Estados Unidos. Essa nova etapa seria sustentada por orçamentos milionários, roteiros de primeira linha e bons atores, os ingredientes para atrair audiência. O cálculo é que a Netflix teria investido US$ 100 milhões nas duas primeiras temporadas da sua série House of Cards, que se tornou, no domingo passado (retrasado), a primeira produção para a web a ganhar um Globo de Ouro (melhor atriz), depois de levar três Emmy em 2013.

A maioria dos setores – da indústria fonográfica e o cinema até a mídia e a fotografia – ainda luta para saber como equilibrar modelos gratuitos e pagos para manter os negócios lucrativos. Mas, à medida que a internet amadurece, também fica claro para os consumidores – ou, pelo menos, parte deles – que alguns serviços, em especial os de maior qualidade, precisam ser pagos. Por mais banal que pareça, é a reabilitação da velha máxima: não existe almoço grátis.

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João Luiz Rosa, do Valor Econômico