Friday, 08 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Onde começa a truculência

As redes sociais não são um espelho da sociedade. Elas são a sociedade. Nas últimas semanas ocorreram dois crimes bárbaros no Rio de Janeiro que tiveram ampla repercussão nestas redes. No primeiro, um menino de 14 anos, negro, foi preso a um poste pelo pescoço com uma trava de bicicleta. Nu. Antes, apanhou. Um Debret soturno, em pleno século 21, nas ruas do Flamengo. No segundo, o repórter cinematográfico Santiago Andrade, da TV Bandeirantes, foi assassinado na Avenida Presidente Vargas, a metros da Central, por um manifestante mascarado. Era dia. A arma do crime: um rojão, fogo de artifício. Nas redes, não faltou gente que manifestasse compreensão por um crime ou por outro. O irônico, de forma alguma engraçado, mas certamente irônico, é que quem compreende um crime sempre condena o outro.

Em tempos de polarização política acirrada, os extremos ganham força. À esquerda, os Black Blocs. À direita, os fascistas justiceiros. Noutros cantos não é diferente. Occupiers em Wall Street e Tea Partiers nos EUA são um o espelho do outro. Assim como os justiceiros e os mascarados cariocas são um o espelho do outro. Os que defendem os crimes de um lado, mas não os do outro, também se espelham. Um a imagem invertida do outro. É o tipo de gente para quem crime tem ideologia. Uns, graves. Outros compreensíveis.

Tem sido muito duro navegar pelas redes. É como se a sanidade de parte de nossos amigos, ou dos amigos deles, tivesse sido suspensa. É como se a legitimidade de atos bárbaros pudesse ser posta em discussão. Como se ideologia fosse atenuante. A internet é um pequeno milagre tecnológico. É um jorro de informação como nunca houve em nossos cento e tantos mil anos por aqui na Terra. Nos aproxima a todos, permite ao fazendeiro no interior da África com um celular nas mãos acesso à informação que faz sua pequena colheita de subsistência mais rentável. Mas a internet, este jorro de informação, este acesso que nos aproxima, ainda é jovem. A tecnologia pode caminhar rápido, nossos hábitos demoram a se formar.

Opinião responsável

O ponto: a opinião de cada indivíduo tem consequência. Opinião não é algo que a gente deva tirar da cabeça e sair espalhando por aí. Opinião, num regime democrático, é uma responsabilidade. De cada um de nós. Tradicionalmente, nas democracias, a opinião que tem consequência se dá na forma de voto. Mas a internet amplia isso em muito. Porque nossos diálogos não são mais privados. Eles ocorrem em público. Reagimos todos às notícias que lemos, vemos, ouvimos, e de presto processamos. Transformamos toda a informação em ponto de vista. Pronto, lá está no Face. No blog. No Twitter.

Opinião alimenta. Temos alimentado este monstro de ódio a cada dia faz alguns anos. De 2013 para cá, se exacerbou. Ganhou as ruas. Porque é isto que são os Black Blocs e os justiceiros do Flamengo: a versão na vida real dos diálogos que tantos vêm tendo online. Quando, na cabeça de muita gente, pensar diferente se torna mostra de mau caráter, o resultado disso na rua são murros, coquetéis molotov, morteiros. Trancas de bicicleta que reencenam as algemas dos senhores de Engenho. Aqueles que só discutem se no calor, impermeáveis sempre a contra-argumentos, alimentam o clima nas ruas.

Não quer dizer que não possa haver calor em discussões. Ou que, às vezes, estejamos convictos de nossas crenças. Quer dizer que se é sempre quente e a convicção é de um permanente inquebrável, foi-se a tolerância. Foi-se a autocrítica. Quer dizer que se a força que não vem do Estado é legitimada, o que quebra é o Estado democrático. A polícia é mal preparada, truculenta às vezes. Até crimes comete. Mas só a força dela é legítima.

Ambos os crimes têm culpados específicos. Mas eles nascem de um contexto e, neste contexto, estamos nós e as conversas que temos tido. Somos responsáveis pelas opiniões que temos. Opiniões podem ser incendiárias. Opiniões incendiárias têm consequências. E, nas ruas, elas já começam a deixar marcas de sangue.

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Pedro Doria é colunista do Globo