Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Tuitando música

Gilberto Gil me convidou para tuitar o seu show hoje à noite, à partir das 21h. Aceitei na hora, mas agora estou cheia de dúvidas: como é que se tuíta um show? Honestamente? Não faço a menor ideia! Já tuitei muitos espetáculos a que assisti – na verdade, quase não vou mais a espetáculos (ou a qualquer outra coisa) sem soltar dois ou três pios, passarinho solto no mundão da internet –, mas esses foram tuítes, se não roubados, pelo menos muito envergonhados.

Até aqui, havia sempre um vizinho de poltrona que olhava cruzado para o smartphone ligado, um segurança que mandava desligar o aparelho e, acima de tudo, a minha própria consciência, cobrando mais atenção ao palco e menos atenção à telinha. Agora não. Nenhuma dessas restrições se aplica, antes pelo contrário: a ideia é, justamente, prestar tanta atenção à telinha quanto ao palco. Vocês podem sintonizar logo mais em www.twitter.com/gilbertogil, buscar o handle @gilbertogil ou acompanhar a hashtag #GilporCora.

Tuitar um show é, em última instância, contar a quem não está no teatro o que está acontecendo lá; transmitir, por escrito, o que rola em música. Contando assim pode parecer esquisito, e é mesmo. Mas tenho um bom precedente em termos de esquisitice, e este aconteceu neste mesmo show – Gilbertos Samba – no dia em que o assisti pela primeira vez, na estreia, no último dia 4. Gil está se apresentando no Teatro Net Rio, que se orgulha de ser uma casa 100% acessível, que recebe a todos com igual atenção. Num canto do palco, portanto, estava um intérprete de Libras, a Linguagem Brasileira de Sinais, traduzindo as músicas para os não ouvintes. Oi?

Uma noite inesquecível

Pois é. “Oi?” foi a minha primeira reação ao ver os intérpretes – eram dois, Jadson Abraão e Davi de Jesus, que se revezavam, e que deram um show dentro do show, cheios de ginga e de simpatia, verdadeiros virtuoses dos sinais. Surdos vão a shows de música? Como assim? Fazer o quê? Mas a verdade é que, num palco ocupado por um ídolo como Gilberto Gil, há muito além da música. Há a sua presença, há os instrumentos insólitos da banda, há luz e sombra, há movimento e muito o que ver. E, pensando nisso, concluí que tuitar o show também não deixa de ser uma maneira de fazer a sua tradução para quem não pode ouvi-lo; uma maneira de levar o que acontece para além dos limites imediatos do palco e do teatro.

Mais tarde, procurando informações sobre os intérpretes do Teatro Net, descobri um depoimento emocionante de Moira Braga, deficiente visual que também assistiu ao show naquele dia da estreia, e que se beneficiou da presença de uma outra espécie de tradutora, a audiodescritora Nara Monteiro:

“Vocês devem estar se perguntando: audiodescrição? Num show de música? Mas precisa? O importante num show não é ouvir a música? Para quem enxerga, pode parecer óbvio, mas foi tão especial poder saber como era o cenário e a iluminação; saber que Gil ficou sozinho no palco e trocou de violão para tocar ‘Ladeira da preguiça’; quando e como se comunicava com os músicos; e sobre estes, multi-instrumentistas, saber quando eles trocavam de instrumento e quem estava tocando o quê; sem falar que os instrumentos tradicionais eu até identifico com certa facilidade, mas, e quando o músico toca duas folhas de lixa? Ou uma faca raspando e batucando num prato de louça? Isso eu jamais poderia imaginar! Nara Monteiro, minha amiga e audiodescritora preferida, foi precisa, como sempre. Sem interferir no espetáculo e aproveitando os momentos oportunos, mas sem perder também o instante, ela descreveu lindamente o show. Acho que foi uma noite inesquecível para todos que estavam no teatro.”

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Cora Rónai é colunista do Globo