Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O sexo como ele (não) é

Na era “analógica”, eram os papos entre amigos, os parcos e entrecortados conselhos dos pais e, principalmente, a prática – sempre repleta de muitas tentativas e muitos erros. Na era digital, são os filmes pornográficos. Numa sociedade cuja educação sexual é falha, cercada de tabus, a internet de alta velocidade inundou computadores, tablets e smartphones de adolescentes e jovens com uma quantidade sem precedentes de filmes de conteúdo explícito, tornando as distorções, os estereótipos e a performance espetacularizada dessas obras, muitas vezes, a referência principal de quem está começando a vida sexual.

A objetificação da mulher, a supremacia do contato genital sobre as trocas afetivas e o raro uso de camisinha são características dos filmes pornô que se reproduzem na vida real, atestam especialistas.

A publicitária e empresária inglesa Cindy Gallop, de 54 anos, foi das primeiras “autoridades” no tema a observar o fenômeno global. Criadora de um site (makelovenotporn.tv) de vídeos e textos com um contraponto “mais humano” à robótica pornografia tradicional, ela diz ter notado um crescente comportamento sexual caricato nos homens com quem sai, a maioria na casa dos “vinte e poucos anos”. “O que eu estava encontrando eram as ramificações da onipresença do pornô hardcore na nossa cultura”, lembra essa filha de pai britânico e mãe chinesa, criada em Brunei e, hoje, moradora de Nova York.

Cindy não é, nem de longe, uma puritana. No seu site, em palestras mundo afora e no livro de 2011 Make Love Not Porn: Technology’s Hardcore Impact on Human Behavior (Faça amor, não pornografia: O impacto do pornô hardcoreno comportamento humano, em tradução livre), ela usa linguagem e conceitos libertários. Mas critica a exposição de crianças e adolescentes desde cedo ao material pornográfico da web: “Está se formando uma geração inteira de meninos que crescerá acreditando que aquilo que veem nos vídeos é a forma como se deve fazer sexo. Os programas de educação sexual são precários, e os pais continuam tendo dificuldade de tratar desse assunto com os filhos. Isso não é nada bom.”

“A pornografia pode até ser útil como experiência”

De acordo com levantamento da consultoria Nielsen, dois em cada três consumidores de pornografia na internet são homens. Assim, não é raro que as fantasias masculinas extrapolem o mundo digital e acabem na rotina sexual dos casais. O programador carioca Rodrigo, de 27 anos, conta ser um consumidor assíduo de pornô. E admite que isto influencia as relações com a namorada. “Com certeza em algum momento da vida rola aquele instante em que você percebe que a pornografia está para o sexo como (o filme) Velozes e furiosos está para dirigir”, compara o jovem, para quem o caráter espetacular e emocionante dos filmes pornô pode tornar frustrantes as relações reais. “Vale mais uma boa masturbação do que uma transa ruim.”

As mulheres já estão se adaptando aos desejos dos parceiros sob influência dos filmes. Com isso, formam-se casais que só sentem prazer se seguirem o roteiro do mercado pornô, explica a inglesa Cindy: “No mundo real, uma das coisas mais prazerosas é o contato de pele. É uma delícia transar com os braços envolvendo o parceiro, com os corpos apertadinhos. Só que isso é inadmissível no hardcore, pois estaria obstruindo o olhar da câmera, que quer focar bem o famigerado ponto de entrada. Se tomarmos a regra desses filmes, todos os homens gostam de dar tapas, todas as mulheres gostam de sexo anal e de xingamentos, e basta uma mínima estimulação do clitóris para que elas estejam prontinhas. Sem falar no clichê de que elas têm orgasmos o tempo todo, e nas mais esdrúxulas posições.”

O estudo “Pornografia, desigualdade de gênero e agressão sexual contra mulheres”, feito pela pesquisadora brasileira Lylla Cysne Frota D’Abreu, da Universidade de Potsdam, na Alemanha, lançou um outro olhar sobre a questão. Para o trabalho, publicado ano passado, Lylla entrevistou estudantes universitários brasileiros do sexo masculino e revelou que 99,7% deles já haviam acessado conteúdo pornô online, 54,3% o faziam com frequência e, entre os mais assíduos, eram maiores os casos de agressões sexuais contra mulheres. “O fenômeno inclui uma ampla variedade de comportamentos, desde passar a mão e tirar peças de roupa, passando por coerção sexual e até estupro”, ela define.

Mesmo no sexo entre homens o pornô pode oferecer influência perigosa. O assistente administrativo Davi, de 25 anos, mineiro de Juiz de Fora que vive há três anos no Rio, afirma que o pouco uso da camisinha e as relações com múltiplos parceiros simultaneamente têm frequentado seu repertório sexual. Ele atribui diretamente o grave descuido ao hábito de assistir a vídeos pornográficos “praticamente todos os dias”: “Não tem como negar que aquilo é excitante, difícil não querer viver uma aventura parecida. Na hora chego a pensar no perigo (de não usar camisinha), mas, se a excitação é muita, passo por cima.”

Uma pesquisa recente revelou que, no Reino Unido, um terço das crianças de até 10 anos já havia acessado algum tipo de conteúdo pornográfico online. Mais de 80% dos adolescentes de 14 a 16 anos o faziam regularmente, dois terços deles por meio de smartphones. Ao mesmo tempo, 70% dos entrevistados disseram nunca ter feito sexo, o que torna a experiência na internet sua única referência sexual.

Segundo Junia de Vilhena, psicanalista do Departamento de Psicologia da PUC-Rio, a visão distorcida sobre o sexo tem raízes antigas e só foi agravada pela disseminação do pornô online. “Essa pressão sobre a mulher, que tem que satisfazer o homem na cama, é fruto da educação machista comum em vários países. A maior característica da pornografia é suprimir a fase de sedução. Pornografia é a antítese do erotismo”, diz Junia. “A pressão pelo desempenho faz com que rapazes de menos de 19 anos consumam Viagra, com medo de falhar.”

O casal swinger Junior e Susy Leal, criador e responsável pelo site especializado em trocas de casais sexocomcafe.com.br, tem um estilo de vida incomum, mas nem por isso dá pouca importância ao consumo de pornografia pelos mais novos. “Somos contra dar acesso livre aos nossos filhos, de 18, 14 e 13 anos”, diz Junior, de 43 anos. “Muitos pais não falam sobre sexo com seus filhos, mas, pela vivência que temos nesse setor, nosso papel é fazê-lo de forma redobrada. A pornografia pode até ser útil como base para experiências. Não acredito que cause danos irreversíveis. Mas é preciso bom senso.”

“Sexo bom é com carinho, vontade e respeito”

Para a sexóloga Laura Muller, autora do livro Educação sexual em 8 lições e colunista do Globo, o problema é a exposição cedo demais. “Para crianças, esse tipo de material é totalmente não recomendado. Já a partir da adolescência, entre 15 e 17 anos, é difícil barrar o acesso. Mas pais e escola podem estar atentos, de modo a passar a noção de limite e o conceito de que existem mil maneiras de viver o sexo, sendo que a melhor é a prática saudável e afetiva. Mais tarde, na vida adulta, o jovem escolherá à vontade.”

A estudante Miyuki Tachibana, 26 anos, é atriz e alt-model (modelo alternativa) do site www.xplastic.com.br. Bissexual, ela tenta eliminar os preconceitos sobre o trabalho sensual: “Já aproveitei (filmes pornô) para aprender truques novos, como fazer um bom sexo oral. Tudo bem consumir pornografia, mas sem deixar as relações pessoais de lado. Sexo realmente bom é com carinho, vontade e respeito.”

“Ninguém me leva ao orgasmo”

X., 23 anos – A jovem escreveu anonimamente para o site makelovenotporn.tv, de Cindy Gallop

A partir dos 13 anos, quando comecei a usar computador, virei uma ávida consumidora de pornografia em vídeo. Lentamente subi na escala, assistindo a perversões mais doentias, até chegar ao que poderia definir como meu limite final. Nunca tive uma relação sexual funcional. Nem creio que um dia terei. Ninguém me leva ao orgasmo. Só chego ao clímax sozinha e me envergonho das minhas fantasias. Pré-adolescentes precisam de educação sexual de verdade, para não virar capachos ou vítimas inconscientes dos caprichos alheios.

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Carlos Alberto Teixeira e Bolivar Torres, do Globo