Todos nós fazemos besteiras quando jovens; uns mais, outros menos. Uns bebem e pagam mico na praça, outros tanto aprontam que acabam expulsos da escola, outros (em geral, outras) ainda acreditam que o amor é eterno e que não faz mal nenhum tirar fotos em pose comprometedora para a criatura amada. Até o século passado, a memória dessas bobagens vivia, essencialmente, na cabeça das testemunhas, e ou virava folclore ou se apagava com o passar dos anos; o fato é que pessoas adultas tinham o direito de se tornarem circunspectas se assim a vida as fizesse sem que ninguém as cobrasse pelos excessos da juventude.
Adultos também fazem besteira, se endividam, dão azar, aparecem em lugares errados, namoram quem não devem, essas coisas. Quem nunca? O aborrecimento, ou mesmo o escândalo, dura um certo tempo, mas depois a própria vida se encarrega de virar a página; a memória coletiva da humanidade, ao mesmo tempo falha e implacável, tende a beneficiar quem toca a sua vidinha na medida das suas habilidades, sem prejudicar ninguém. Embora a literatura esteja cheia de heróis e de heroínas perseguidos no tempo e no espaço por erros do passado que insistem em vir à tona nos momentos mais inadequados, o fato é que, até outro dia, todos nos beneficiávamos de um direito básico, o direito ao esquecimento.
Aí veio a internet, se popularizou e, na prática, acabou com isso. Antigamente era fácil, por exemplo, pegar as poucas fotos do casamento malsucedido, e cortar fora o ex-cônjuge que os anos tornaram odioso. Hoje as fotos digitais se multiplicam e, quer queira quer não, a qualquer googlada a antiga cara metade se vê obrigada a encarar o fato de que, um dia, casou com aquela coisa que ali está. Qualquer pessoa que já viveu uma relação que não deu certo sabe como isso é perturbador. Mas essa convivência forçada pela eternidade é coisinha de nada comparada a situações que podem ter repercussões práticas no presente e no futuro; e foi contra isso que se rebelou o espanhol Mario Costeja, que processou o Google para que tirasse do ar uma notícia de jornal publicada em 1998, a respeito de sua situação financeira de então.
Direito básico
O Tribunal de Justiça da União Europeia acatou o seu pedido, e foi além: determinou que qualquer cidadão europeu tem direito ao esquecimento e, como Costeja, pode pedir a remoção de links que considere negativos para sua imagem. Como isso vai ser feito é que são elas. As dúvidas técnicas levantadas pela decisão do tribunal são fichinha se comparadas às dúvidas morais.
Em tese — e eu concordo com essa tese — todo mundo tem direito ao esquecimento. Mas também tenho muitas dúvidas. A verdade é que certos fatos que se encontram na rede a respeito das pessoas são, também, um mecanismo de defesa da sociedade quando essas pessoas se candidatam a cargos políticos, ou se propõem a exercer profissões que lidam com o público.
Nem preciso me estender sobre a alegria com que a maioria dos nossos políticos receberia a lei europeia. Mas será que autores de crimes hediondos (ainda que a justiça não os classifique assim) têm direito ao esquecimento? Será justo com a sociedade que monstros como os que em 2005 amarraram uma cadelinha grávida a um carro e a arrastaram pelas ruas de Pelotas, por exemplo, possam retirar da internet os links que nos lembram disso?
Por outro lado, será que a vasta maioria da humanidade, que não faz mal a ninguém, merece perder um direito básico por causa de uma minoria do mal?
Pois é: muitas, muitas dúvidas.
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Cora Rónai é colunista do Globo