É sério, tenho me sentido dentro de um episódio do fantástico Além da Imaginação, série de TV dos anos 80 que colocava seus personagens em situações surreais. Num desses episódios um cara acorda e ninguém entende o que ele fala. As palavras estão trocadas, ou seja, tem significados diferentes. Na cena final, resignado, ele ouve o filhinho lhe ensinando que o ultimo dia da semana se chamava “dinossauro”. Tenho me sentido assim. Liberdade e coerência perderam completamente o significado. Entrei numa máquina do tempo ou perdi o bonde?
Em que momento Software Livre virou sinônimo de Open Source? Quando foi que GNU virou sinônimo de Linux? Quando foi que usar Facebook e Gmail passou a ser aceitável?
Como o significado mudou, o que eu escrevo não tem o efeito esperado. Os leitores reagem como se eu os estivesse ofendendo, acusando, diminuindo. Não dá para refutar a Lei da Gravidade nesta dimensão, é algo que se aplica a tudo e a todos. Não é uma ofensa pessoal lembrar as pessoas que ela existe e é imutável. Você tem todo o direito de se ofender, de berrar, de apontar minhas incoerências, me taxar de improdutivo, estrela, chato, feio e bobo. Mas adivinha? A Gravidade não vai deixar de existir por causa disso. Então vou repetir, de novo: Software Livre e Open Source Initiative não são a mesma coisa. Mas não tome a minha palavra apenas.
Na lista do PSL-BR, Bruno Souza, diretor da OSI, me deu uma explicação prolixa [ver aqui], dizendo que SL e OSI são de fato movimentos diferentes – obrigado Bruno – mas que lutam pela mesma coisa: liberdade do código para proteger o usuário. Segundo a explicação o que diferencia o movimentos da iniciativa é a abordagem. A OSI teria um “aproach” mais pragmático, direcionado aos tomadores de decisão, empresários e pessoas que não entendem argumentos como liberdade e ética como vantagens competitivas em uma economia de mercado, então a OSI usa argumentos como qualidade de software, desempenho, custo e outros que soam mais atraentes para esse público. Segundo meu entendimento da lógica OSI a ideia é levar o código livre a maior quantidade possível de pessoas através do convencimento dos usuários e tomadores de decisão, inclusive sendo complacente com o uso de Software Proprietários e serviços privativos se isso for necessário. O objetivo é, no fim, popularizar o uso de softwares que tenham códigos disponíveis.
Enquanto isso no SL a preocupação é com os princípios éticos, ideológicos, sociais e políticos do uso de Software Livre e por conseguinte, dos malefícios do uso de Softwares Proprietários e serviços privativos. A abordagem é focada nos benefícios sociais, no combate às mazelas políticas e de controle impostas pelo código fechado. O “aproach” é mais na linha do “por um Mundo melhor”, algo meio hippie, meio ecologista, algo mais lúdico. Alguns, inclusive, definem essa abordagem de utópica. Como o próprio Stallman diz que o Software Livre é “um movimento social e político pela liberdade dos usuários de programas” [ver aqui]. Não se trata de fazer o programa ser mais vendável ou aceitável, é sobre convencimento ético e filosófico através do entendimento dos benefícios do uso de Softwares Livres. Dureza! Mas é isso.
Então temos duas formas de propagar uma ideia. Uma focada nos benefícios éticos e o outro nos benefícios comerciais. Eu não vou fazer juízo de valor. Resumindo é isso.
Ferramentas em nuvem
Compreendidas as diferenças elementares agora cabe avaliar a evolução do movimento e da iniciativa e ver como estamos hoje. Esta é a minha visão e pode não ser fidedigna e, talvez, nem mesmo realista. No decorrer da última década a abordagem da OSI foi extremamente bem sucedida, pois o convencimento pelos argumentos OSI massificaram o uso de softwares com código aberto para pessoas que nem sabem o que é isso. O Android é um excelente exemplo disso, por exemplo. Entretanto o companheiro de luta, o SL vem falhando fragorosamente. Trata-se de uma relação inversamente proporcional: quanto mais usuários de softwares de códigos abertos, menos usuários nas fileiras do Software Livre. Por que será?
Permitam-me ir um pouco mais fundo na análise. Quando o movimento SL nasceu no Brasil, ele era eminentemente SL. Foi a convicção ética, social e política de que o Software Livre era bom para a sociedade que motivou a maioria dos ativistas. Foi baseado nessas premissas que se fundou o CIPSGA, o Projeto Software Livre Brasil , a ASL, o FISL e tantos outros exemplos. A prova disso são as infindáveis palestras sobre como ganhar dinheiro com Software Livre em quase todos os eventos. Fomos uma legião de ativistas que eram constantemente chamados de radicais pelas empresas de Software Proprietário e seus aliados. Essa foi a tônica até que o Google mudou a forma de lidar com o Software. A licença GPL define lealmente o que é Software Livre e ficava fácil distinguir. Com os serviços em nuvem a faixa cinza do que era ou não aceitável ficou muito maior. Era possível usar os serviços do Google, como Gmail, sem desrespeitar a GPL nem nenhum princípio explícito da FSF. Esse argumento foi usado massivamente por praticamente todos os ativistas.A GPL3 não emplacou.
Me lembro bem do primeiro FISL em que o Google apareceu nos crachás do evento. Minha primeira reação foi pedir uma caneta Pilot e riscar o nome dela. Lembro das caras de indignação de todos, afinal o Google era uma empresa “amiga” que estimula e contribui com o Software Livre e a prova estava ali, no patrocínio do FISL. Gastei muitas horas tentando explicar às pessoas o porque elas estavam erradas e como o Google se aproveitou das brechas da GPL2 e usando todos os argumentos comerciais tinha convencido a todos. Foi muito triste. Mas, vejam vocês: três anos depois eu mesmo me convenci de que não havia problema e criei minha conta no Gmail. E vivi feliz na “Matrix” por dois anos. Foram os argumentos de popularização, de massificação, de otimização e toda essa terminologia mercantilista associada à verdadeira funcionalidade de suas ferramentas que tinham me convencido. Porque não fui cativado pelo Windows, mas sim pelo Google? Agora éramos uma legião de ativistas de Software Livre que tínhamos sucumbido ao argumento OSI de atingir as massas através do pragmatismo mercantilista, enfurnados como felizes usuários de uma ferramenta proprietária e todos seus encantos.
O salto das ferramentas do Google para o Facebook, Skype, OS X, iPhones e outras é mais da mesma explicação acima. Trata-se da evolução lenta e gradual da complacência dos argumentos do “aproach” OSI de militância que permitiu atingir milhares de pessoas, mas usando as ferramentas e meios complacentes que o SL não aceita: uso do Facebook, catalisando as relações com a Apple que usa BSD, justificando a inserção de códigos proprietários no Kernel Linux, achando que a inserção de spyware no Ubuntu é algo irrelevante, e muito mais. E com esses resultados palpáveis para mostrar que sua forma de atingir o mesmo objetivo do Software Livre era certa, grupos de usuários inteiros, eventos inteiros e muitos radicais foram convencidos a também serem complacentes. Assim, de complacência em complacência, os ativistas que outrora se posicionavam pela forma SL de atingir o objetivo, migraram para a forma OSI de atingir o objetivo.
Essa migração natural é fruto da complacência pragmática do OSI. Fui vítima dela. Como disse num artigo anterior, é difícil trocar os confortos da Matrix pelo creme sintético à bordo da Nabucodonosor. As tentações são muitas, sejam comerciais, de alcance efetivo da militância. Quem pode desprezar o argumento de que de atingem, literalmente, milhões de pessoas usando o Facebook? Quem pode desprezar as pressões sociais de nosso modelo econômico lhe empurrando todo santo dia para o consumismo e portanto para o “ganhar dinheiro” é mais importante? Quem pode suportar todos os inconvenientes de não estar “na moda”, “na onda”, “com o melhor design”? Quem consegue suportara tudo isso mesmo vendo que seus companheiros de ativismo também estão nessa onda? Quase impossível. Sem nenhum medo de errar, só posso citar o Stallman. E é exatamente por isso que ele foi transformado em um “mal necessário”. Percebam a inversão da situação. Um dia o argumento era de que a convivência com o Software Proprietário seria “um mal necessário” para poder atingir nosso objetivo. Hoje, em quase todas as mensagens mais elaboradas vejo algo do tipo “os radicais são necessários”. O Stallman pela sua inabilidade natural de relacionamento interpessoal, tem sido agredido de todas as formas possíveis, exatamente porque ele não se deixa levar pela complacência.
Juntam-se então a fome com a vontade de comer: o pragmatismo técnico mercadológico dos argumentos OSI cai como uma luva na insaciável busca das corporações e governos de eliminar custos e aumentar produtividade sem nenhum questionamento ideológico. Empresas modernas e antenadas percebem a oportunidade e faturam, se apropriando da inteligência coletiva, do esforço de milhares para criar seus monopólios, suas redes sociais, seus dispositivos interconectados, sempre com o mesmo objetivo: ganhar para eles. Aos “bobinhos” do Software Livre organizam gincanas como o Google Summer of Code. Arregimentam os melhores do mercado do código aberto, agora para trabalhar internamente em suas super estruturas. Não é mera coincidência, no Brasil, que esses melhores eram também os líderes de diversas comunidades, grupos e eventos de Software Livre. É assim que o GNU se transforma em Linux. É o argumento OSI quem elimina o GNU.
Então, se SL e OSI são aliados para alcançar o mesmo objetivo, é chegada a hora de fortalecer os argumentos Software Livre e ver se podemos nos beneficiar dessa massa de usuários para trazer a tona os aspectos éticos e filosóficos. Esse sempre foi o papel do FISL, por exemplo, trazer todos para um centro de convivência onde se buscava a demonstração clara de que se pode transformar o mundo não apenas usando programas de código aberto, mas entendendo os princípios éticos e o alcance transformador de sua ideologia.
Quando preconizei a morte do Movimento Software Livre, me referi à busca pelo convencimento através de argumentos baseados na ética, na ideologia, no movimento transformador social e político. Se o crescimento da massa de complacentes continuar nesse ritmo, muito em breve não haverá mais efeito transformador algum, pois as ferramentas em nuvem que não desrespeitam as liberdades do usuário serão absolutas e dentro delas estará um seleto grupo de produtores de Softwares abertos que não tem a menor percepção da importância de seu código ser aberto. O movimento Software Livre e seus argumentos serão suplantados pelo pragmatismo mercadológico.
Fora da ordem
Acredito que agora ficou fácil de perceber que é exatamente esse pragmatismo e complacência que o OSI implementa o maior responsável pela redução do entendimento ético e ideológico do Software Livre. Portanto eu acredito que está na hora de fazer uma desassociação do OSI. Em minha opinião o objeto final do método OSI pode até ser o mesmo que o do Software Livre, mas estou convencido de que seus meios terminarão por extingui-lo. Nós, os defensores do Software Livre, se não sairmos das redes sociais devassas, se não deixarmos de usar Ubuntu, se não tornarmos inaceitável o uso de Gmail, Skype, iPhone, se não migrarmos para redes sociais livres e federadas, se nos não formos capazes de gerar um antagonismo a tudo isso como fizemos com o uso do Windows, seremos extintos.
Não serei hipócrita, pois nunca fui. Incongruências e incoerências todos temos. O problema é que esse pragmatismo OSI, que leva à complacência, que confunde, tem se tornado o padrão do movimento. A relação de incoerência é de 95% incoerente para 5% coerente. Temos que fazer algo para trazer essa relação para patamares mais próximos de nossos interesses como Movimento Software Livre. Há alguns anos poucos se arriscariam a fazer uma palestra usando Windows ou Mac. Hoje é quase maioria. Há alguma coisa fora da ordem.
Por isso, para que não haja nenhuma dúvida: muito menos OSI para que possa haver muito mais Software Livre.
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Anahuac de Paula Gil é membro do Movimento Software Livre desde 1996. Criador do projeto KyaPanel, publicado no portal do Software Público, criador do primeiro servidor da rede social livre Diaspora no Brasil e autor do livro OpenLDAP Extreme