Prepare-se, pois se o tema ainda não bateu à sua porta o fará em breve, e você terá que opinar e se posicionar em relação a ele.
De que tema estamos falando? De aulas de programação computacional para crianças. Isso mesmo! Não se trata da discussão se devemos ou não introduzir aulas de filosofia, religião ou acrescentar mais aulas de ciências em nossos já carregados e fragmentados currículos escolares.
O tema da vez – que já está se tornando febre no exterior e começa também a bater à porta das escolas brasileiras, sobretudo as particulares e mais caras – é a introdução da programação de computadores nas séries iniciais da escolarização.
Não pense que há algum erro ou exagero no que foi dito antes. Trata-se mesmo da proposta de incluir esse aprendizado desde cedo, já nas séries iniciais, equivalentes ao nosso ensino fundamental, ou até na própria educação infantil.
A nova tendência, como se pode imaginar, surgiu nos Estados Unidos, incentivada (e patrocinada) por grandes empresas de tecnologia e seus fundadores, entre as quais se destacam Microsoft e Facebook.
Por intermédio da Code.org, uma organização não governamental, essas e outras empresas ligadas à tecnologia da informação têm creditado recursos milionários para disseminar a programação entre os mais jovens e têm obtido enorme sucesso e muita receptividade à sua proposta.
Nos Estados Unidos, já há currículos e recursos desenvolvidos e destinados às diferentes idades, treinamento sendo oferecido aos professores e um eficiente trabalho de divulgação (leia-se lobby) junto às autoridades educacionais e políticos. Tudo com o objetivo explícito de fomentar a incorporação da programação na vida diária dos escolares. Se possível, nos currículos oficiais dos estados norte-americanos, e o quanto antes, melhor.
Em um artigo recente publicado no The New York Times, fala-se, inclusive, em um ‘movimento nacional pelo ensino de programação’ nas escolas norte-americanas. Coisa da pesada! De quem realmente está preocupado em “inspirar a paixão pela tecnologia”, “incentivar as carreiras ligadas à computação e à tecnologia da informação”, “garantir a empregabilidade futura” e “desenvolver habilidades cognitivas e lógicas”.
Essas, é claro, são as alegações dos defensores da medida. E, como se pode perceber, é realmente difícil não ser ‘fisgado’ por elas. Qual professor ou professora que não se importa com essas questões atualmente? Qual pai ou mãe que não se preocupa em “conferir vantagens iniciais” ou “preparar seu filho para o futuro”?
Interesses e intenções
Mas, se você quer ter uma visão realmente equilibrada dessa questão, deve também ouvir os críticos a ela – e eles não são poucos. Da leitura do próprio artigo que indicamos antes, é possível deduzir, por exemplo, que há também outros interesses e intenções, não tão ‘nobres’ quanto os apresentados anteriormente, que podem estar por trás dessa iniciativa.
Incentivar o consumo de tecnologia desde a infância pode ser um deles. Manter a hegemonia e o domínio sobre um setor que é estratégico para a economia norte-americana, formando mão de obra qualificada para isso, pode ser outro.
Ou seja, para muito além da preocupação com o sujeito da aprendizagem, sua felicidade e seu sucesso (presentes e futuros), podem estar envolvidos, na iniciativa de promover a programação computacional ainda na infância, interesses muito maiores, sobre os quais caberia refletir: a quem ou a que deve se destinar a educação?
Se a educação que queremos deve ser voltada ao sujeito e à sua felicidade (não necessariamente à satisfação da demanda ou a garantir o sucesso de uma economia nacional), é no mínimo questionável se devemos induzir nossas crianças a abdicar da infância, incluindo mais uma atividade formal e intelectual em suas já carregadas agendas infantis.
Como já tivemos oportunidade de discutir aqui, o brincar espontâneo e livre é essencial na infância. É uma característica adaptativa, selecionada evolutivamente e compartilhada pelos humanos com outros animais, principalmente mamíferos. O brincar não dirigido garante aprendizagens e o desenvolvimento de habilidades que nos são fundamentais não apenas na infância como em nossa vida adulta. Entre elas, aquelas que estão na raiz mesma do que é ser humano e que garantem a nossa sociabilidade.
Sabemos como nos comportar e conviver socialmente e reconhecemos nossos ‘limites sociais’ em grande parte porque o aprendemos logo cedo, em brincadeiras e jogos espontâneos e interação com outras crianças, muito mais do que com os adultos.
Mas, se o tempo para brincar e interagir socialmente com nossos pares começa a ser ‘roubado’ por demandas mais e mais acentuadas de aprendizagens intelectuais e cognitivas, o que devemos esperar do futuro?
Já estamos vivendo acentuadas mudanças no padrão de comportamento social humano. De modo geral, as famílias se reduziram e mudaram de configuração. Em muitos casos, ambos os pais trabalham e, sobretudo nos grandes centros urbanos, muitas crianças já não têm irmãos para brincar ou não são autorizadas a frequentar os espaços públicos e cultivar o convívio social com seus iguais.
As crianças já se encontram privadas em suas casas do convívio social ideal com outras crianças e até com adultos, e encontram-se vivendo em um contexto em que a escola se tornou praticamente o único espaço para a brincadeira e a socialização. Será, portanto, que se justifica tirarmos delas mais desse tempo e espaço, introduzindo em seu lugar mais atividades intelectuais ou virtuais?
Mesmo que se argumente que isso será feito de forma lúdica e adaptada à idade, precisamos pensar se isso se justifica.
Com base nos resultados de pesquisas em psicologia social, sabemos que é na infância, principalmente entre três e nove anos de idade, que as crianças aprendem a compartilhar atividades e experiências; a reconhecer semelhanças e diferenças entre si e os outros; a trocar informações e comunicar-se mais objetivamente; a compartilhar sentimentos e resolver conflitos e a ser mais atentas emocionalmente, considerando não apenas seus próprios interesses e sentimentos, mas também os dos outros. A infância é, portanto, considerada uma fase ideal para se investir na construção de nossas bases sociais.
Da parte da psicologia cognitiva também se tem uma contribuição interessante para esse debate. Com base em resultados de pesquisa, sabemos que a forma de pensamento da criança mais nova é diferente da do adolescente.
Na adolescência, tornamo-nos mais capazes de pensar sobre possibilidades e sobre hipóteses; sobre o não observável e abstrações. Na adolescência, lapidamos nossa interação social e ganhamos em competência intelectual, tornando-nos mais capazes de pensar além dos limites convencionais. Isso torna essa fase a mais ideal para se investir no desenvolvimento de nossas bases cognitivas, o que envolve diretamente estimular o pensamento abstrato e lógico.
Diante de todo esse conhecimento acumulado pela psicologia do desenvolvimento, é de se questionar, portanto, até que ponto introduzir o ensino de programação computacional tão cedo fará realmente a educação avançar ou novamente empacar, levando-nos a embarcar em mais um modismo sem fundamentação científica.
Não estaremos, como alerta a sabedoria popular, colocando o carro na frente dos bois e, nesse caso, prejudicando o pouco de bom que ainda nos resta da educação na infância?
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Vera Rita da Costa, do Ciência Hoje/ SP