Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Computador passa no ‘Teste de Turing’

Cinco computadores foram testados na Royal Society, em Londres, para ver se poderiam enganar as pessoas fazendo-as pensar que as máquinas eram seres humanos durante conversas baseadas em texto. E, no último sábado, um dos algoritmos de computador parece finalmente ter enganado os juízes na mesma Royal Society onde o teste foi criado.

Coincidentemente, a notícia, originalmente divulgada num comunicado de imprensa da Universidade de Reading http://goo.gl/fks3zA, vem a público no ano do 60º aniversário da morte de Turing.

O teste em questão foi criado em 1950 pelo matemático inglês Alan Turing, pioneiro da informática e criptólogo da Segunda Guerra Mundial. Segundo ele, se uma máquina era indistinguível de um ser humano, então ela era capaz de “pensar”. Um filme de 1h30m em inglês sobre a conturbada e tristemente terminada vida de Alan Turing pode ser visto no YouTube, em http://youtu.be/S23yie-779k.

Segundo o Telegraph, o teste de Turing é considerado um “jogo de imitação”: um juiz conversa com um humano e com uma máquina por meio de um sistema que obscurece tudo, exceto o texto. Se o juiz for enganado mais de 30% do tempo de modo a pensar que está teclando com uma pessoa em vez de um computador, então tal máquina pode ser considerada inteligente.

O chatbot – software de bate-papo – vencedor, denominado “Eugene Goostman”, conseguiu convencer 33% dos juízes que era humano, muito embora para os outros jurados tenha ficado claro que se tratava de um computador. O site de Eugene, que se autodefine como “the weirdest creature in the world” (a criatura mais estranha do mundo), é http://www.princetonai.com. Nele pode-se papear com o chatbot, mas conseguir acessá-lo é quase impossível pelo excesso de gente querendo brincar de conversar com o autômato.

Perguntado sobre quem o criou, uma das respostas de Eugene foi: “Fui criado em um laboratório ucraniano secreto, um resultado de experimentos mal sucedidos de criar um robô movido a gás russo roubado e gorilka”, uma forte bebida destilada da Ucrânia.

“No campo da inteligência artificial, não existe marco mais emblemático e controverso do que o teste de Turing”, disse o professor Kevin Warwick, da Universidade de Reading. “É justo que tal importante marco tenha sido alcançado na Royal Society, em Londres, berço da ciência britânica e palco de muitos grandes avanços na compreensão humana ao longo dos séculos. Este marco entrará para a história como um dos mais emocionantes.”

A máquina de tão propalado sucesso foi criada por Vladimir Veselov, natural da Rússia e morando nos EUA, e Eugene Demchenko, um ucraniano que vive na Rússia. “É um feito notável para nós e esperamos que aumente o interesse por inteligência artificial e chatbots”, declarou Veselov ao Telegraph.

O professor Warwick, por sua vez, reconhece que já houve alegações anteriores de que outras máquinas teriam passado no icônico teste em competições semelhantes em todo o mundo. “Acontece que um verdadeiro teste de Turing não pré-define questões ou temas antes das conversas”, disse. “Assim, estamos orgulhosos em declarar que o Alan Turing teve um aprovado pela primeira vez”.

O estudioso, no entanto, advertiu que a existência de um computador com tal aptidão em inteligência artificial teria sérias implicações para a sociedade, e poderia servir para despertar ideias e iniciativas ligadas ao cibercrime.

Afinal o que é inteligência?

De acordo com Daniel Schwabe, professor titular do departamento de informática da PUC-Rio e Ph.D em Ciência da Computação, o teste de Turing fazia mais sentido quando predominava uma visão mecanicista do ser humano. “Essa visão focava mais na capacidade de raciocínio e na lógica, sem falar em emoções ou sentimentos. Mas inteligência é algo mais amplo. O conceito de ser ou não humanamente inteligente lembra aquela cena clássica do filme Blade Runner, em que o replicante vivido por Rutger Hauer desabafa no telhado, sob chuva forte, que possui mais memórias do que qualquer humano já teve e que, sendo assim, porque não pode ser considerado um humano?” recorda.

Schwabe lembra do programa Eliza, que trabalhava com processamento de linguagem natural. O software executava scripts, dentre os quais o mais famoso era o Doctor, que simulava um psicoterapeuta. Uma conversa via texto com Eliza muitas vezes também enganava o humano, fazendo-o pensar que estava teclando com uma pessoa.

Aliás, numa anedota contada pelo cientista e escritor futurista Ray Kurzweil http://goo.gl/P6TcLA, Eliza foi a primeira máquina a passar no famigerado teste de Turing.Nela, um estudante conversa por texto com alguém pensando tratar-se de um palestrante do MIT (Massachusetts Institute of Technology). Mas na verdade estava teclando com Eliza. Quando perde a paciência com as evasivas do “palestrante”, decide telefonar para o tal professor, acordando-o no meio da madrugada. E o pobre catedrático, cheio de sono, reage como se fosse a própria Eliza, respondendo a uma pergunta do rapaz com outra pergunta quase igual. “Tivemos muitos avanços no campo de tratamento de linguagem natural. E nos dias de hoje temos muitos dados disponíveis. O Google, por exemplo, faz muita coisa em inteligência artificial, porém mais baseada em estatísticas obtidas a partir de seu gigantesco banco de dados”, explica.

“Afinal, não é à toa que se diz que ‘data trumps everything’ (dados superam tudo)”, diz Schwabe, lembrando a fala de Josh Estelle, engenheiro de software de tradução do Google, ao tratar de algoritmos de aprendizado que antes lidavam com 10 mil exemplos de treinamentos com resultados medianos, mas que com 10 bilhões de exemplos tinham um desempenho naturalmente muito melhor.

Ainda sobre software “enganando” humanos, Schwabe cita um trabalho de 2014 de pesquisadores da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) http://goo.gl/ItuSFa, em que foi criado um perfil artifical no Twitter. “Eles desenvolveram um software-robô que foi bem sucedido em garimpar tweets interessantes de outros usuários em certas áreas e retwittar esses posts”, conta. “No final das contas, o perfil enganou a todos, tornando-se bastante popular e atraindo um bom número de seguidores no microblog. E o experimento fez tanto sucesso que virou matéria na revista do MIT” (veja http://goo.gl/fSr1Qy).

Aprimorando os conceitos de inteligência artificial, o filósofo americano John Searle publicou em 1980 o artigo “Mentes, Cérebros e Programas”, onde propôs o hoje famoso experimento “Chinese room” (quarto chinês) http://goo.gl/KA3rFi, sugerindo que o teste de Turing não poderia ser usado para determinar se um computador pode de fato pensar. De acordo com a Wikipédia, Searle observou que programas como ELIZA poderiam passar no teste simplesmente manipulando símbolos dos quais os próprios softwares nada conheceriam. E sem esse conhecimento, o processo não poderia ser considerado um pensar.

Transcrições das conversas

A façanha do autômato da Universidade de Reading fica um pouco esmaecida pela própria escolha do personagem do chatbot. O computador está fingindo ser um rapaz ucraniano de 13 anos que fala inglês como segundo idioma. Ou seja, além de ser uma sutil maneira de burlar o teste, trata-se de uma fraca desculpa para não projetar um software que tenha aptidão linguística apurada na língua dos quase 300 juízes angloparlantes envolvidos no experimento.

“Quando a transcrição das conversas for trazida a público, poderemos ver do que realmente se trata isso tudo: talvez um conjunto de truques, e não inteligência artificial de verdade”, diz um comentarista canadense de nick Dynamorph, da Universidade McGill.

O site do Telegraph teve acesso a uma pequena parte das perguntas feitas ao autômato. Pelo link http://goo.gl/JfyA7Tpode-se notar que as respostas dadas por Eugene estão longe de ser convincentes, pelo menos na amostragem liberada, já que o pacote completo das transcrições não foi fornecido pela universidade.

Controvérsia

Outro aspecto controverso é que o Prof. Kevin Warwick tem um longo histórico de factoides bombásticos para atrair mídia, o que desperta uma ponta de desconfiança no recente anúncio.

Em 1998, e novamente em 2002, ele teve um chip implantado em seu braço, tornando-se conhecido como “Professor Cyborg”, proclamando-se o primeiro cyborg da História. Em tempo, um cyborg (de “CYBernetic ORGanism”) é uma criatura humana com um ou mais implantes de componentes eletrônicos ou computacionais em seu corpo.

O tal chip, que também foi implantado depois na esposa de Warwick depois que a segurança do procedimento foi comprovada, teria sido inserido no sistema nervoso de ambos e conectado a um computador. A ideia era registrar emoções e experiências por meio de padrões de excitação nervosa nos chips, passando esses dados para o computador. A imprensa amplificou brutalmente o feito inédito e o cientista aproveitou para lançar um livro dois anos depois, que esperava-se seria um grande sucesso. Mas não foi.

“Seus factoides muitas vezes não têm o devido embasamento científico, já que matérias em jornal em geral não são estruturadas como artigos científicos genuínos, contendo hipótese, aparato, método, resultados e conclusões. Assim, fica meio difícil analisar objetivamente o trabalho dele”, disse à “BBC“ na época o analista Dave Green.

Da mesma forma que desta vez ele tenta gerar susto apontando iniciativas temíveis do cibercrime decorrentes do computador que alardeia ter passado no teste de Turing, em seu livro “I, Cyborg” http://goo.gl/41qfVp, de 2004, ele fez questão de estampar na capa uma foto um tanto terrificante de si mesmo parecendo com o personagem de “The Terminator”. E ao final da obra, ele esbraveja sobre a iminente escravização da humanidade.

Além disso, diz Green, diante de várias alegações de que ele não tinha escrito muitos artigos científicos, Warwick fez questão de, em seu livro, documentar seus trabalhos acadêmicos de maneira excessivamente detalhada, aproveitando para incluir falas positivas a seu respeito proferidas por celebridades sem qualquer projeção científica, como a atriz Gillian Anderson, que desempenhou o papel da agente Scully, no seriado Arquivo X.

Diante desse retrospecto, não seria má ideia apostar que muito em breve Warwick lançará um novo livro, desta vez sobre o terrível futuro da humanidade, que daqui a muitos anos (segundo ele) será dizimada pelo mau uso da inteligência artificial.

Conclusão: pura balela

O site “TechDirt” http://goo.gl/v7CX5tresume bem a questão e conclui que o anúncio é barulho demais para pouca substância. Primeiro, não se trata de um “supercomputador”, é apenas um chatbox. Não há “inteligência” envolvida, artificial ou não. Vários outros chatbots já alardearam terem passado no teste, alguns até com margens melhores que o Eugene. Além disso, o novo autômato burlou as regras, fingindo ser um rapaz ucraniano sem domínio completo do inglês. Aliás, as tais regras do teste não são mais do que invenções, já que a proposta original de Turing era diferente. Outro ponto é quem foram os juízes escolhidos no experimento? E será que a experiência pode ser repetida por outros pesquisadores chegando aos mesmos resultados? No fim das contas, acaba sendo natural concordar com a assertiva de que o tão propalado teste de Turing hoje pode ser considerado mais como uma brincadeira meio sem sentido.

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Carlos Alberto Teixeira, do Globo