Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Homo digitalis

Cena de escritório:

– No Facebook de novo, Agnelo? Cadê meu relatório?

– (olhos fixos na tela) Aqui.

– E por que esse relatório não estava mais cedo na minha mesa? Vou ter que regular a internet de todo mundo por tua causa? O que que é isso?

– Isso o quê?

– Isso que você postou agora no Facebook.

– Eu posto várias coisas no Facebook. Não sei do que você está falando.

– (lendo o post) “Chegou a gentalha para estragar a minha felicidade. #nãomexenaminhainternet.”

Personagem de um esquete do Porta dos Fundos, o tal chefe significa muito da vida real. Está cada vez mais difícil capturar a atenção das pessoas. O impacto da tecnologia sobre o ser humano é brutal.

O Facebook reina no tempo gasto on-line, um pedaço cada vez maior da vida humana –um internauta brasileiro navega cerca de 30 horas/mês.

Sutil e rapidamente, a maneira de enxergar o mundo muda. A lógica do newsfeed impera: a narrativa diária que passa diante da vista é uma justaposição de histórias atomizadas. Os desdobramentos disso estão por todos os lados.

O jornalismo que o diga. Fórmulas tradicionais, como manchete e pirâmide invertida (contar uma história do mais para o menos importante) estão em xeque, desafiadas por reportagens em pílulas espalhadas por linhas do tempo.

A publicidade já mudou. As marcas cada vez mais aparecem logo no início da propaganda, já que a maior parte das pessoas clica e pula o anúncio.

As TVs partiram para um “se não pode com o inimigo, alie-se a ele”. Incentivam o uso da chamada segunda tela: já que as pessoas vão dividir a atenção entre a televisão e o celular, melhor que seja para discutir a novela nas redes sociais.

Repercutir não quer dizer prestar atenção. Inexiste relação entre compartilhamento e leitura de um texto, mostrou estudo da empresa Chartbeat.

O homem digital chacoalha conceitos antigos da teoria da comunicação, como emissor, mensagem e receptor.

A linguagem da tecnologia aproxima um brasileiro e um chinês. Mas os distancia de quem está off-line. Nesse sentido, a internet se soma a outros fatores de desigualdade no planeta, como alimentação, educação e saneamento. A revolução digital promove sua própria seleção natural.

Quase dois terços dos 7,2 bilhões de humanos ainda não estão online. Quem está já caminha para um mundo de raciocínio ainda mais fragmentado –1,5 bilhão de pessoas carregam uma Times Square de bolso chamada smartphone.

De balões privados a projetos estatais de banda larga, não faltam planos para levar logo a internet aos demais. Se você chegou até aqui, talvez compartilhe dessa pressa.

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Roberto Dias é secretário-assistente de Redação da Folha de S. Paulo