A insaciável revolução digital acaba de fazer uma de suas mais improváveis vítimas: o jornalismo criado para contar sua história. Na mesma semana em que o jornal Folha de S.Paulo matou seu pioneiríssimo caderno “Informática” (criado em 1983 e rebatizado como “Tec” em 2010), o repórter de tecnologia Dave Lee, da BBC britânica, bateu mais um prego nesse caixão decretando: “Os jornalistas de tecnologia estão em vias de extinção.”
Li as duas notícias com um misto de alívio e saudosismo. Saudosismo como veterano jornalista de tecnologia, que há alguns anos se afastou do métier para encarar outros desafios. E alívio ao confirmar que não é infundada minha sensação de anacronismo cada vez que corro os olhos por um veículo especializado no tema. A tecnologia já está tão entranhada em nossas vidas que faz cada vez menos sentido ter alguém “lá”, cobrindo “assuntos relacionados com a tecnologia”.
Pior: quem acompanha atentamente a evolução da tecnologia sabe que, se hoje ela está entranhada em nossas vidas, dentro de alguns anos estará, literalmente, entranhada em nossos corpos. Que “editoria especializada” poderia dar conta dessas transformações?
Dave Lee lembra, de maneira jocosa, que nos anos 90 a BBC criou o cargo de correspondente na internet. A ideia, que hoje pode parecer ridícula, fazia sentido numa época em que a rede não era pervasiva como hoje. A gente, de fato, “entrava” na internet. O ritual era embalado pelo inconfundível som de um modem, conectando nossos computadores via linha discada a algum servidor misterioso. A sensação não era a de compartilhar arquivos em uma nuvem, mas sim de entrar em algum escaninho escondido nos subterrâneos da rede.
Rumores sem sentido
Há dez anos, em 2004, participei de uma onda de renovação do jornalismo de tecnologia, quando fui convidado para reformular o caderno “Informática” de O Estado de S.Paulo. Mudei o foco, dos gadgets e lançamentos de aparelhos, para as transformações que eles causavam na vida das pessoas, e criei o “Link”. Esse caderno semanal, que transformou o jeito de se fazer jornalismo de tecnologia no Brasil, teve a morte decretada em abril do ano passado – um dos raros momentos em que o Estadão esteve à frente da Folha, que só veio enterrar o seu “Tec” agora.
A decisão, em ambos os casos, nada teve a ver com o anacronismo da cobertura de tecnologia do ponto de vista do público. Ambos jornais declararam que o motivo foi o baixo investimento por parte dos anunciantes. O irônico é que, como Dave Lee destacou, publicações de tecnologia acabaram se transformando em vitrine de lançamento de produtos, e seus jornalistas em presas fáceis para os departamentos de relações publicas das empresas de tecnologia. Assim, elas conseguiam publicidade gratuita travestida em conteúdo editorial. Anunciar para quê?
“Vamos encarar os fatos: se você acha que está dando um “furo” na Apple publicando fotos do ‘novo’ iPhone que ‘vazaram acidentalmente’, é melhor cair na real. Vamos parar de perder tempo – e forrar os bolsos – com rumores inconsequentes e sem sentido que não estão servindo ninguém, muito menos o nosso público”, disparou o editor de tecnologia da BBC.
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Ricardo Anderáos é diretor editorial do Brasil Post