Em janeiro passado, Amanda Tinoco, de 36 anos, sofreu a maior dor que pode se abater sobre uma mãe: em coma por quatro dias depois de ser atropelado, seu filho, Gabriel, morreu aos 16 anos. Em choque pela perda e em meio à saudade, a analista de telecomunicações encontrou no Facebook um canal para processar seus sentimentos, a partir das mensagens de solidariedade que recebeu na rede, das visitas ao perfil virtual de Gabriel e da oportunidade de interagir com os únicos capazes de entender o que ela sente, outros pais que perderam seus filhos.
O caso de Amanda não é exceção. Onipresentes na vida de milhões, as redes sociais transformaram a forma como nos relacionamos com o mundo, extinguindo, para muitos, as fronteiras entre o real e o virtual. Um grande impacto na vida e também na morte. Num fenômeno já notado por terapeutas e pesquisadores, esses sites vêm adicionando novos elementos à forma como lidamos com a perda de pessoas amadas, seja pela presença dos perfis dos mortos ou de grupos que os reúnem.
Mensagens de amigos e estranhos
Esta semana, o luto digital mostrou sua força global. Somente algumas horas depois de anunciada a trágica queda do avião da Malaysia Airlines sobre o Leste da Ucrânia, matando 298 pessoas, parentes e amigos de muitos deles iniciaram uma corrente de posts de despedida que se espalharam pela internet. Um texto postado por um dos passageiros que desistiram do voo – um holandês que publicou em sua página no Twitter uma foto do avião em que embarcaria – acompanhado de uma mensagem que fazia referência ao avião da Malaysia sumido em março, no qual ele também quase embarcou, foi compartilhado por centenas de milhares de internautas mundo afora. Sempre com palavras de luto e pesar. As redes se tornam, assim, a um só tempo, canais de informação e homenagem.
– Quando o acidente (com o filho, Gabriel) aconteceu, o Facebook acabou servindo como ferramenta de informação para nosso círculo de amigos, que passou a acompanhar a nossa luta durante o coma. O que vimos pela rede foi uma grande mobilização por meio de preces, mensagens de apoio e canalização de energia – lembra Amanda.
Nas primeiras semanas após a perda de Gabriel, marcadas por “entorpecimento e reclusão total”, Amanda diz que navegar na web era uma das poucas atividades que conseguia fazer devido à falta de disposição para conversar com outras pessoas. Nesse momento, o site a ajudou a descrever o seu desespero, mas também a encontrar conforto em homenagens de amigos do filho registradas no perfil do jovem – ainda mantido on-line por ela.
Em maio, com a aproximação do Dia das Mães, Amanda criou uma página na rede dedicada a mães que, assim como ela, perderam seus filhos.
– Isso foi importante, ajudou a formar uma rede de solidariedade. Só uma mãe nessa situação entende a dor que a morte de um filho provoca. Por isso, a cumplicidade encontrada nos ajuda – afirma, em referência à página “Mães para sempre”. – No meu caso, isso só foi possível por causa das redes.
Médica e terapeuta especializada em luto há 14 anos, Adriana Mathias afirma que, há pelo menos cinco, nota os impactos que sites como o Facebook têm nas pessoas que perderam entes queridos.
– Se, antes, as redes eram usadas para homenagear os mortos, agora elas estão se tornando espaços de busca por solidariedade. Além disso, há também uma tendência na formação de grupos envolvendo pessoas com experiências semelhantes, que se associam para buscar compreensão – explica Adriana. – Há ainda uma necessidade de não deixar a memória do ente desaparecer, a partir da manutenção do seu perfil virtual.
Adriana diz observar que, em diversos casos, como o de Amanda, as redes digitais vêm ajudando os enlutados a lidar com a ausência da pessoa querida. No entanto, isso não é regra:
– Há aspectos negativos também. No luto, a negação também é uma fase, e, ainda que saudável e natural, quando prolongada pode tornar a vida da pessoa complicada. Nesses casos, a dificuldade de lidar de maneira saudável com as dinâmicas das redes pode fazer com que o enlutado as use como forma de evitar a realidade.
Maria de Lourdes Casagrande, de 53 anos, diz ter consciência sobre a dualidade dos efeitos que o virtual pode ter sobre aqueles que perderam alguém. Depois da morte do filho Denis, de 21 anos, em setembro de 2013, ela conta que decidiu preservar o perfil do jovem no Facebook como forma de “mantê-lo vivo”.
– Nesse momento, você só pensa em preservar a memória da pessoa. E como, para os jovens, o site é muito usado, faz sentido manter a página no ar para que as pessoas que o conheceram possam se lembrar dele – afirma a gerente comercial, que, apesar da decisão, diz ainda não se sentir preparada para visitar a página. – Ainda é muito doloroso.
No entanto, a rede também tem sido fonte de alento. Após a morte do jovem, assassinado em uma festa na Universidade de Campinas (SP), onde estudava, os amigos dele criaram a página “Somos todos Denis” no Facebook, para homenageá-lo. Ainda que a visite apenas às vezes, Maria de Lourdes diz que as mensagens deixadas nela lhe fazem bem:
– Não tiram a minha dor, mas aliviam. Agora, queiramos ou não, essa presença na rede também remete à dor da perda. Então, tento não acessá-la nos momentos em que estou me sentindo frágil.
Após a morte de um usuário, as redes sociais permitem que o seu perfil possa ser retirado da web ou assumido por parentes, mediante solicitação e envio de documentos. Mas essas informações costumam ficar meio escondidas. Para aqueles que optarem por assumir os perfis dos que se foram, é importante explicitar que o gerenciamento está sendo feito por outra pessoa.
– Isso evita que, em momentos de fragilidade, pessoas enviem mensagens achando que ninguém vai lê-las, mas que podem causar constrangimentos – afirma a terapeuta Adriana.
Para além da administração das páginas dos que se foram por parentes, grupos de usuários se dedicam a listar os perfis dos mortos, estabelecendo uma espécie de cemitério virtual. Criada no Facebook em 2009, o “Profiles de gente morta” reúne mais de 10 mil membros que, diariamente, incluem perfis de recém-falecidos, adicionando a causa da morte e, quando possível, notícias que a comprovam.
Ainda que reconheça que a página pode ser vista como mórbida, seu criador, Victor Santos, de 33 anos, nega que explorar a dor alheia seja sua intenção:
– O objetivo principal é que ela funcione como uma espécie de memorial aos falecidos com perfis na rede, uma homenagem e um registro virtual. Entendo os julgamentos. Não é algo comum, gera interpretações incorretas. Mas a página trata de algo natural, que faz parte da vida.
Fenômeno é tema de estudos
Moderadora do grupo, Ana Bittencourt, de 39 anos, vê a popularidade dele como resultado da curiosidade que muitas pessoas sentem sobre a morte.
– Para muita gente, a morte ainda é um tabu, e o grupo acaba sendo um espaço onde elas têm liberdade para discuti-lo – afirma. – Há regras. Proibimos imagens de violência. Também inibimos críticas aos falecidos porque não admitimos desrespeito. Já recebemos pedidos para remover perfis da lista. Nesses casos, atendemos prontamente. Não é nossa intenção magoar ninguém.
A relação do mundo virtual com a morte atrai inúmeros pesquisadores. Organizado pelos professores Cristiano Maciel e Vinicius Pereira, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), o e-book “Digital Legacy and Interaction: Post-Mortem Issues” (Legado digital e interação: Questões pós-morte), de 2013, reúne artigos do mundo todo que abordam aspectos técnicos, legais e culturais do tema.
Para Cristiano, o assunto tende a se intensificar:
– Antigamente, o cemitério ficava longe, mas agora a presença da pessoa falecida está logo ali. E muitos jovens da geração Z estão tendo o primeiro contato com o tema nesse ambiente – afirma.
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Thiago Jansen, do Globo