Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Febre da notícia inventada

No dia seguinte à derrubada do voo MH17, postaram na rede um vídeo já conhecido pelos internautas, de um gigantesco cargueiro em queda livre numa área rural, sob o título: “Que míssil?”. Contestava a versão de que o Boeing 777 da Malaysia fora abatido.

Só que não era o MH17. O vídeo, manjado, era de 2013, de um Boeing Cargo 747 que caiu no Afeganistão pouco depois de decolar, matando os sete tripulantes. Quem se deu ao trabalho de postar a falsa versão?

Outros postaram versões de que outro voo da Malaysia, o MH370, não desaparecera no mar, mas teria pousado numa ilha sob a custódia de terroristas. Como outros se deram ao trabalho de apagar uma tatuagem de Neymar e dizer que o mesmo estaria fingindo ao entrar num hospital e, logo, elaboraram uma intrincada teoria da conspiração, de que venderam a Copa. Sem contar as infindáveis teorias sobre o míssil que teria derrubado uma das torres no 11 de setembro.

Há mais de um século, jornalistas são acusados de fabricar notícias de acordo com interesses pessoais, do patrão ou por autopromoção. Curiosamente, a confusão entre fato e invenção se instaurou quando o cidadão comum, o internauta anônimo, em posse das ferramentas da Revolução Tecnológica, tornou-se também difusor de notícias. Ele passou a inventar, a fabricar notícias e compartilhar falsas versões. Como aqueles que criticou desde a Revolução Industrial.

A modernidade e a linguagem jornalística levaram Walter Benjamim a decretar o desaparecimento do narrador tradicional, a morte da narrativa. Há uma incompatibilidade entre narrativa e informação. Narrativa leva à reflexão. Notícias são efêmeras e só têm relevância enquanto é novidade. Mas a informação hoje anda tão sem crédito, que é possível que narradores ressurgiram para reinventar o real.

Camilo Rocha resumiu no último caderno “Link”: a era do compartilhamento em massa cria uma febre de notícias inventadas (ver aqui). Por que nos inundam de informações falsas, compartilhadas por uma sociedade que não apura e tende a acreditar em mensagens que têm a estrutura de uma notícia? Pela facilidade de compartilhar. Pelo fetiche de ser notado na internet. Por diversão.

Falsificar a realidade tornou-se padrão. O problema é que nos acostumando com essa piada.

Felicidade sim

Vivemos a espetacularização da felicidade nas telas. Se nem sempre estou feliz, por que preciso parecer que estou? Precisamos ser alegres e felizes. Saudades dos anos 1980, em que fazíamos cara feia nas fotos, cara de bravo, de braços cruzados, blasé. Cara de revoltado com Reagan, Thatcher, a desordem econômica e geopolítica.

Nos querem sorrindo para as câmeras. Diga queijo. Diga cheese. Diga xis. Está muito sério. Faça um coraçãozinho agora. Qual o problema de não estarmos o tempo todo felizes?

Poucos sabem: nos jogos da Copa, o pau comia nas arquibancadas. A imagem que rodava era a aprovada pela Fifa, que controlava com mão de ferro a alavanca do switcher e selecionava o que ia pro ar. Mas bastou misturar a torcida, juntar tensão, rivalidade, sol na testa e bebida farta…

Nos jogos da Argentina, o sangue rolou entre eles e brasileiros ofendidos com a tola musiquinha que insistia que “Maradona es más grande que Pelé”. Maradona não foi “más grande” que Pelé, nem nunca será. Uma xenofobia explosiva, e a inveja pelo bom futebol, descontrolou brasileiros ofendidos com a invasão dos hermanos.

Na final, vi cenas degradantes, muita violência gratuita, muita provocação. Você viu? Vi seguranças apartarem brigas. Vi a PM entrar na arquibancada e arrancar brasileiros e argentinos que saíam no pau. Vi brasileiros com a camisa do Flamengo se sentarem no meio da torcida argentina, nervosa com o jogo, e xingarem a cada lance perdido. Vi duas garotas voluntárias da Fifa gritarem, quando a Alemanha fez um gol: “Vai embora! Isso aqui é Maracanã! Maracanã é nosso!”. Ouvi o tempo todo: “Ahha, uhhu, o Maraca é nosso!”.

Calma lá, os caras não são fáceis, passam o jogo provocando. Quase saí no braço com um argentino que insistia em entrar no banheiro de deficientes e destratou a funcionária do estádio.

Se o Maracanã é nosso, por que organizamos uma Copa, reformamos e convidamos o mundo para conhecê-lo, cobrando caro?

Você viu pela TV e nos telões uma torcida alegre, colorida, cantando o hit Happy da sensação Pharrel Williams: “Because I’m happy, clap along if you feel like happiness is the truth, because I’m happy, clap along if you know what happiness is to you, because I’m happy, clap along if you feel like that’s what you wanna do” (Já que estou feliz, bata palmas se sente que felicidade é a verdade, já que estou feliz, bata palmas se sabe o que felicidade significa pra você, porque estou feliz, bata palmas se você acha que é isso que quer fazer). Foi a imagem com que a Fifa encerrou o expediente, depois de Alemanha 1 x 0 Argentina, enquanto o pau rolava pelas rampas do Maraca: xingamento, empurra-empurra, cordão de isolamento da PM, provocações e brigas que se estenderam até as areias de Copacabana.

Se a Fifa manipula a verdade, um hoax divertido rodou na rede, mostrando através de um vídeo fictício manipulado pela TV estatal que a Coreia do Norte teria vencido o Brasil por 7 x 1 na final do Mundial de 2014 (que, por sinal, nem disputou).

Um evento esportivo do porte da Copa do Mundo não é mais um evento jornalístico. A empresa organizadora detém os direitos sobre todas as imagens captadas e represa com rigor o que pode ser veiculado. É um espetáculo. Um show manipulado.

Como nos filmes Jogos Vorazes e O Show de Truman, a manipulação da informação (do real) é a garantia de bons negócios. Os estádios são como domes cercados e domados por leis próprias de um Estado interventor, invasor e inventor, a Fifa.

Seria tão bom se só houvesse felicidade e a tristeza tivesse um fim. Mas, como bem sabe a bossa nova, atrás da beleza há sempre a verdade crua do poeta sofredor.

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Marcelo Rubens Paiva é colunista do Estado de S.Paulo