A vida digital é um campo minado, na era da socialização rotineira por redes dominadas pelo verbo e pela imagem. Vivemos num período em que difundir é apoiar, não apenas difundir. Divulgar se tornou opinar. O meio é a mensagem e a opinião. Cite uma frase que um comediante postou e você não gostou. Poste apenas para amigos, como quem diz: olha o que ele postou. Mas postar o post de outro sugere aprovação. Alguns criticarão: se postou, concordou com o que o comediante postou. Ao exibir o dito passou a “dizer”.
Gostei de um filme e postei a minha opinião. Mas um amigo tinha criticado o filme, tinha postado sua opinião, divergente da minha, e eu não tinha lido. Mandou mensagens perguntando se eu fazia alguma “indireta” ao ter postado em seguida a ele elogios àquilo que criticou. Se eu dissesse que não lera o que ele tinha postado, poderia se sentir ofendido, por eu não acompanhar a sua linha de tempo atentamente. Ignorei. O amigo não fala mais comigo.
Encaminhei para minha mulher uma matéria absurda sobre a qual discutimos no café da manhã. Encaminhei pela rede social, já que foi nela que a li. Ao encaminhar, uma amiga ligou pedindo para tirar, ou melhor, desencaminhar, operação que me fez perder uns 30 minutos, pois eu não sabia desencaminhar. Ela achou, e suas amigas poderiam achar, que eu defendia a matéria. Eu não defendia a matéria absurda. Apenas encaminhei para ouvir a opinião da minha mulher, se era mesmo absurda. Desencaminhei.
Um amigo morreu. Sua irmã anunciou a morte pela rede social. O que faço, “curto” o anúncio? “Recomendo” a notícia? Outra foi assaltada e avisa que ficará um período sem celular. Curti. Ninguém curte saber que um amigo é assaltado. Queria apenas que ela soubesse que fiquei ciente de que ficaria um período sem celular. Mas o clique que me resta é “curtir”. Ficar ciente de um assalto é curtir. Saber da morte e confortar uma família é curtir. Mostrar para um amigo algo que não concorda é “recomendar”.
Precisão matemática
A limitação semântica das redes sociais cria um sem-número de mal-entendidos, que podem interferir nas nossas relações. A economia de palavras pode mudar a forma de pensarmos. Assim como o “sim” e o “não” (ou zero e um) da linguagem digital, binária, nos obriga a esclarecer que não defendemos nem criticamos uma proposta ao comentá-la, que talvez não tenhamos opinião, que talvez desejamos dizer nem “sim” nem “não”, mas “talvez”.
Outro dia tuitei: “O candidato Eduardo Jorge fez campanha numa horta para alfaces”. Não o criticava. Foi uma referência à entrevista que dera ao Jornal Nacional, dentro de uma horta, sozinho, defendendo a agricultura familiar, enquanto outros candidatos apareceram em comícios armados, carreatas agitadas por bandeiras e militantes pagos, em cenários exuberantes selecionados por marqueteiros.
O candidato xis chegou de jatinho, fez caminhada pelas ruas, inaugurou uma usina, discursou para camponeses e depois agricultores, o candidato ípsilon participou de uma carreata, inaugurou uma fábrica, discursou para operários e depois encontrou industriais, e o candidato Eduardo Jorge caminhou pela salada.
Uma patrulha me atacou. Não entendeu a sutileza. Era uma observação em aberto, que podia ser interpretada ao gosto do freguês. Na verdade, eu mirava a histeria de uma campanha eleitoral, o contraste entre diferentes correntes ideológicas, a verdade contra a ilusão em que mergulhou a política brasileira, sebastianista na origem, messiânica na essência. Mas o candidato do PV é inteligente, sacou a ironia e respondeu: “E todas apoiaram meu plano de governo”.
A rede social nos pede economia de palavras, caracteres, argumentos. Nos força a ter uma precisão matemática, para não sermos mal-entendidos. Nos obriga à exatidão. Mas, sem espaço para argumentos, nos deixa órfãos e em maus lençóis. Deveria haver “curtir”, “saquei”, “que pena”, “me solidarizo”, “compartilho sem concordar”, “recomendo como Rivellino, concordando enfaticamente”, “recomendo como Raul Seixas”, recomendando apesar de não ter opinião formada sobre tudo.
Primeiro escalão
Outro dia tuitei: “No cinema ontem as 3 pessoas na minha frente viam o filme, curtiam e postavam coisas ao mesmo tempo. No Face! Pq sai de casa?”. Uma garota lamentou que nada deveria me impedir de sair de casa. Demorei para entender que ela entendeu errado. Não me perguntei “por que saí de casa?”, mas por que uma pessoa que vai ao cinema e fica numa rede social sai de casa. Nunca deixarei de ir a um cinema porque hoje em dia uma porcentagem alta de espectadores fica com a tela do celular na cara trocado mensagens, postando, curtindo e compartilhando, e espero para breve uma campanha introdutória das redes de exibição, pedindo para não fumar, deixar celulares no modo silencioso e não entrar em redes sociais durante a exibição do filme, pois a luz da tela do celular atrapalha aqueles que estão nas fileiras de trás, mesmo que se diminua o brilho na opção ajustes + geral + imagens de fundo e brilho.
Minha seguidora não percebeu que eu acentuara corretamente o verbo sair. Porém, eu deveria ter sido preciso na conjugação e escrito “Pq saem de casa?”, já que eu me referia a três pessoas. Me faltou a precisão.
Sair de casa e ir a um evento é prestigiar o evento, aprovar, curtir e se tornar aliado? Recebi um e-mail do amigo Fernando Meirelles: “Na segunda-feira a Marina Silva vai se encontrar com a classe artística de São Paulo para trocar uma ideia. Ela quer ouvir e falar do que pensa para esta nossa área e responder a questões sobre o assunto”.
Porém, recebi do amigo Ney Piacentini, da Companhia do Latão, um convite para o encontro de artistas na mesma segunda-feira à noite com a candidata Dilma, no Oi Casagrande, teatro do Rio de Janeiro.
Em ambos os eventos, encontraria amigos. Seria interessante ouvir propostas das candidatas. Ir a um dos eventos seria entendido como apoio à candidatura. Se eu fosse fotografado cumprimentando, poderiam suspeitar que me oferecia a uma vaga no futuro governo. Se rolasse um abraço, pronto: eu galgava cargos do primeiro escalão. Não fui a nenhum dos dois. Jantei uma salada. Alfaces apoiaram a minha isenção.
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Marcelo Rubens Paiva é colunista do Estado de S.Paulo