Ao olhar para o quadro “Automat”, de Edward Hopper (1882-1967), sou tomado pelo sentimento de solidão. A imagem da mulher em uma lanchonete, sozinha, com o olhar fixo em uma xícara de café, em contraste com a escuridão do exterior visualizada pela janela ao fundo, dimensiona a tristeza retratada pelo seu autor. O ambiente é o da contemporaneidade, dos tempos modernos em que, supostamente, sempre se teria um colega de trabalho, vizinho, vendedor de verduras, qualquer coisa assim, com quem conversar e se tornar amigo. Todavia, o ser humano de Hopper está cada vez mais sozinho.
Tudo aconteceu em uma apresentação de música popular ao ar livre, em uma noite muito quente de sábado, em algum lugar da Europa. Ficava incomodado com o fato de a mulher, de uns 50 anos ou mais, sentada no gramado, assim como eu, de frente para o palco, a menos de dois metros de mim, consultar o celular a todo instante. Manipulava rapidamente a tela com os ágeis dedos de forma constante – e a música tocando. Não me lembro se aplaudia ao final de cada número. Lembro-me, contudo, que digitava no celular. Entretanto, naquele segundo de silêncio, na parada do compasso musical, ao ouvir o sonoro anúncio do WhatsApp, percebi do que se tratava.
O meu incômodo se tornou ainda maior quando notei que ela não era a única, representando, em verdade, uma parcela considerável da plateia. Uma grande quantidade de pessoas estava fixada em seus celulares. Diante da situação, temia outro compassado silêncio em que escutaria, novamente, o sonoro ruído – o engraçado e inconfundível assovio – indicando a chegada de uma nova mensagem. Em um primeiro momento, antes de me dar conta do virtual ofício da plateia durante a apresentação musical, pensei existir algo carente de urgência para se tratar em uma noite de sábado e tentei, na medida do possível de minha rabugice, compreendê-la. Contudo, logo percebi a urgente condição de todos.
Mas, os aplausos existiam. Sempre. Notei que muitos, embora não tenham assistido a uma das canções tocadas, aplaudiam. Será que perceberam o erro de um dos músicos? Será que ele errou? Bem, em meio à premência do contato virtual, não creio na capacidade de o público whatsappeante elaborar um julgamento a esse respeito. Apenas aplaudiam. E, no final, para a minha surpresa, a mesma mulher do princípio da história, voltou-se para os músicos, cumprimentando-os, elogiando muito o show e comprando o CD da banda.
Minutos finais de uma despedida
Não desejo ser amargo, avesso às inovações tecnológicas. Pelo contrário, anseio a compreensão desses tempos. Em uma belíssima e quente noite de sábado, ao ar livre, com a apresentação de um grupo musical aclamado pelo próprio público, o que poderia ser mais importante? O que não poderia esperar? É nisso que volto ao quadro de Hopper. As obras do pintor norte-americano retratavam aquele instante preciso em que, no meio de tanta coisa ofertada pelo mundo moderno, a solidão se torna visível. Hopper, em minha opinião, é um pintor de instantes. Ele consegue justamente demonstrar como existe tédio, monotonia, vazio e tristeza em um lugar repleto de recursos. Trata-se de uma tristeza e uma solidão proveniente de outro lugar ou, minimamente, podendo derivar da própria sociedade moderna e seus inúmeros artifícios.
Vejo o WhatsApp encaixando-se perfeitamente em um quadro de Hopper. Comecei a perceber que praticamente todas as pessoas, neste quente e agradável sábado à noite, ao ar livre, diante de uma apresentação gratuita de música popular no gramado, riam ao escreverem e lerem suas mensagens no WhatsApp (claro, com suas consideráveis exceções). Hoppertianamente falando, elas correspondiam justamente às infinitas ofertas do mundo atual para superarem uma solidão existente em seu interior ou, pelo contrário, com potencial de surgir repentinamente. Parecia, assim, uma coletiva tentativa de fuga àquele momento figurado em um quadro do pintor norte-americano.
Eu seria minimamente estúpido, e até ridículo, ao não reconhecer os ganhos comunicacionais proporcionados pelo WhatsApp e seus congêneres – todas as facilidades advindas de um avanço tecnológico como este são admiráveis. Ademais, acredito na vinda de ganhos ainda maiores. Porém, desejo atentar para a compreensão do processo social e o tipo de sociedade formada a partir disso – quais os novos modelos para se pensar as relações sociais? O que permanecerá do velho? O que vem do novo? Qual o impacto na constituição da própria sensibilidade do indivíduo?
Outro exemplo: recentemente um casal de amigos que se mudava do país queixava-se de que, nos minutos finais da despedida de sua única sobrinha ela simplesmente permanecia vidrada no WhatsApp. Qual a compreensão que a adolescente fez deste instante final? O que a mantinha conversando pelo smartphone ao invés de dar adeus aos tios e desejar-lhes boa viagem? O que significa ela sequer lhes arguir sobre o seu destino? Onde está o seu interesse?
Novíssimas tecnologias
Mais um exemplo: uma chinesa, de uns 30 anos, que trabalhava todos os dias, sem exceção, em sua loja de variedades, próximo à minha casa. Em um feriado recente, fui surpreendido ao encontrá-la fora de seu estabelecimento comercial, sentada ao sol em uma praça com o seu filho de aproximadamente dois anos. Ele chorava. Ela, WhatsApp. Aguardei e espreitei por alguns longos minutos sem me preocupar de ser interpelado por observar, tentando decifrar aquele instante. Independente da causa do choro da criança, calada após ser vencida pela apatia materna, ela permanecia impassível com o smartphone. Por quê?
Neste ponto, é notória a coincidência entre o interesse da adolescente, da mãe com seu filho e o da mulher da apresentação musical. Todas estavam motivadas em um objetivo único: conversar pelo ambiente virtual, pelo WhatsApp. Obviamente, poderiam estar atentas aos números musicais, aos nostálgicos relatos dos tios ou ao choro do menino pedindo algo, mas, visivelmente, existia um outro mundo chamando-as. O necessário zelo de uma relação com o outro, de responder aos estímulos sempre presentes na sociabilidade, poderia ser questionado: havia zelo para com os músicos, para com os tios ou para com o filho?
A propósito, aquele que se encontra do outro lado da conversa também adquire importância na questão. É interessante pensar em seu nível de conhecimento quanto ao momento da conversa, principalmente no que diz respeito ao seu interlocutor. Será, realmente, que um sabia o que o outro fazia? Sabia que seu interlocutor estava em uma apresentação musical ao ar livre? Sabia da despedida de seus tios? Sabia que ele estava diante do filho desejoso de atenção? Se não, há, igualmente, zelo? Enfim, onde está o interesse?
Bem, diante desta nova configuração assumida pela sociedade mediatizada pelas novíssimas tecnologias, cabe apenas tentar encontrar uma definição para palavras utilizadas por mim ao longo do texto, como zelo, interesse e até mesmo relações sociais. Talvez o próprio significado de zelo, tal como uma definição mais precisa, tenha sido alterado e a representação, juntamente com sua importância, dos eventos traduzidos pelos meus exemplos, tenha se alterado – carecendo de uma interpretação profunda, tal como um processo de compreensão por parte dos estudiosos e dos rabugentos, adeptos das antigas tecnologias. Insisto em não dizer que é algo melhor ou pior. É, sobretudo, diferente. Mas, voltando à obra de Hopper e sua eterna busca pelo momento, pelo instante, não posso fugir à retrógrada impressão de que cada indivíduo desta sociedade tenta escapar de ser retratado por Hopper.
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Faustino da Rocha Rodrigues é professor e jornalista