Enquanto a atriz britânica Emma Watson fazia um discurso perante a ONU buscando refundar o feminismo para os tempos digitais, um novo pacote de fotografias e vídeos pessoais de atrizes, modelos, cantoras e atletas chegava à rede. Mais de uma centena de arquivos, mais de vinte mulheres. Selfies das cantoras Avril Lavigne, Rihanna, Taylor Swift; das atrizes Olivia Munn, Abigail Spencer. Foi um fim de semana nada ordinário para a internet.
É o segundo grande vazamento em menos de um mês. Se no primeiro a coleção de arquivos tinha muita nudez e muita intimidade mas a explicitude ficava quase sempre apenas sugerida, isso mudou. Uma mulher, por ser uma das principais estrelas em ascensão de Hollywood, tornou-se símbolo da derrama da vida privada. É Jennifer Lawrence. Há novas fotos dela que a expõem mais.
Os dois episódios, o discurso de Emma Watson e os vazamentos, se encontraram na manhã de segunda. Um dos membros do 4Chan, o site no qual foi primeiro publicado o pacote, a ameaçou. “Emma, você é a próxima”, ele escreveu. “O maior ainda está por vir”, encerrou. Dado o anonimato vigente no site, é impossível saber se a ameaça vem de um dos hackers ou apenas de um desocupado. Mas ela reforça o discurso de Watson e torna claro o viés agressivo, misógino e sádico do episódio.
Junto ao primeiro vazamento foi publicada, também, uma lista de mulheres famosas. Não havia imagens de todas, mas estava lá a promessa de que elas apareceriam. Nas últimas três semanas, muitas dessas mulheres se tornaram reféns. Que imagens estariam nas mãos dos hackers? No caso de algumas, como no de Lawrence, fotos mais inocentes faziam parte de séries mais íntimas. Não apenas sua nudez foi tornada pública como, embutido no pacote, estava clara a ameaça. Eles tinham mais.
Sadismo, misoginia.
Privacidade violada
Segundo o site TMZ, atores estão preocupados porque podem ser as vítimas de uma terceira onda. Mesmo que seja verdade, não é a praxe. Mulheres são as vítimas contumazes. Inúmeros vazamentos pontuais já ocorreram desde que a rede é rede e a proliferação de smartphones tornou os selfies, inclusive os nus, onipresentes. Este episódio é radicalmente distinto: uma geração de mulheres famosas foi feita refém.
“Considero que é meu direito tomar decisões a respeito de meu corpo”, disse Watson à assembleia da ONU. “Que é meu direito ser tratada com o mesmo respeito dado aos homens. Mas, infelizmente, posso afirmar que em nenhum país do mundo as mulheres podem esperar que tais direitos lhes sejam garantidos.”
O fato de ter feito o discurso no sábado foi o suficiente para se ver vítima de uma ameaça na segunda. Quem a ameaça apenas confirma o que disse às Nações Unidas. Mesmo rica, branca e famosa, nascida em um dos países pioneiros do feminismo, em 2014 ela não tem o direito a tomar esta decisão a respeito de seu corpo: se sua nudez será pública ou não; não tem o direito ao respeito que vem sendo garantido aos homens.
Uma das marcas de Jennifer Lawrence, sua companheira de geração, fama e carreira, é o bom humor. A moça não se leva a sério, tem espírito esportivo. Embora capaz de ser sensual, coisa inerente ao ofício de ser atriz, tem um quê de moleca. Nas últimas semanas, se calou acuada.
Mesmo que o FBI, polícia federal americana, consiga localizar e prender este grupo de hackers, outros vazamentos massivos serão inevitáveis. Nos últimos anos, a privacidade sexual violada tornou-se parte inerente de nossa cultura. Não há sinal de que vá mudar tão cedo. E este vazamento, sejam suas vítimas famosas ou não, é seletivo. Atinge mulheres.
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Pedro Doria, do Globo