Quando o vídeo mostrando a decapitação do jornalista James Foley chegou à internet, no dia 19 de agosto último, boa parte da imprensa mundial tomou a decisão de não exibi-lo. Alguns mostraram um ou outro quadro do filme, o repórter de joelhos com macacão laranja, o executor mascarado vestindo negro não à moda do Islã mas com trajes que lembram algo entre o carrasco europeu medieval e um ninja japonês.
O vídeo estava na internet para quem se esforçasse por encontrá-lo, testemunho da brutalidade do Estado Islâmico. Mais de um comentarista pediu ao público que não buscasse ver todas as imagens em respeito ao morto. O pedido foi repetido quando um segundo jornalista, Steven Sotloff, encontrou fim semelhante. E um pedido equivalente apareceu quando vieram à tona as três ondas de vazamento de fotografias e vídeos íntimos de mulheres famosas.
Os dois eventos são muito distintos. A morte brutal de dois homens de um lado, a violação da privacidade de um grupo de mulheres do outro. Mas há um princípio que os une. De formas diferentes, ambos tratam da violação da dignidade . Freud não viu Eros e Tanatos juntos à toa, a pulsão do desejo sexual e da morte. Os franceses não chamam o orgasmo de pequena morte sem motivo. Porque provavelmente nada será tão íntimo quanto os momentos do gozo e da morte. São instantes de fragilidade absoluta. Às vezes, desviar o olhar é instintivo.
O pedido para que estas imagens não sejam vistas é natural. Curioso que tenha sido repetido, no mesmo período de um mês, tantas vezes. O instinto de desviar o olho só é natural quando flagramos a intimidade ao vivo. Na tela do computador ou do celular, nos reduzimos à condição de voyeurs. Ninguém saberá, afinal.
Escolha, reflexão
Quando imagens que por algum motivo são fortes chegam a uma redação, nós jornalistas somos obrigados a buscar o equilíbrio entre interesse público, choque desnecessário do leitor e preservação da dignidade de quem está na imagem. Dependendo da cultura local, a decisão jornalística será diferente. O que não muda é que há uma reflexão. Tampouco muda o fato de que, para tomar a decisão, costumamos ver tudo.
Diz o truísmo que, na internet, todos viramos jornalistas. Todas estas imagens de morte, de sexo e de nudez estão na rede. Parte do processo de alfabetização digital é começar a se questionar. O ato de ver algo profundamente íntimo é uma violação. Mas, ao ver o que já foi tornado público, aprende-se algo?
Às vezes, sim. Peter Maas, um dos mais experientes correspondentes de guerra dos EUA, argumenta que o hábito jornalístico de limar as piores imagens dos conflitos tirou a sensibilidade do povo americano. Maior exposição ao horror forçaria todos, no mínimo, a uma visão mais circunspecta, realista, a respeito de guerras.
Sem defender que tais imagens sejam vistas, Dexter Filkins, na New Yorker, faz outro argumento. O olhar mais sensível perceberá, após a exposição aos muitos vídeos de assassinatos dos grupos de facínoras islâmicos, que ali não está o desejo de uma pátria, de independência, não há uma busca política. O que há é desejo de matar. Psicopatia. E esta é uma lição importante a respeito do que estes grupos representam.
A internet não vai embora. Vídeos e fotos que representam flagrantes da intimidade, de fragilidade, continuarão a aparecer. Trata-se de uma máquina de violar privacidade. Estas imagens representam gente exposta. Elas têm custo e o preço é cobrado em dignidade de quem vê e de quem é visto.
Adultos podem escolher ver. É informação que está no mundo. Mas que a escolha de ver parta de uma reflexão. É o mínimo.
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Pedro Doria, do Globo