Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Entre a catarse fascista e o exibicionismo

O engano faz parte da estrutura da percepção da realidade. Não é por acaso que o discurso publicitário está no centro da sociedade de consumo. Imaginem uma peça publicitária de uma marca de cigarros que descrevesse todos os componentes que contém no produto? Ao contrário, é uma vida de realizações que é associada ao produto. O engano naturaliza-se. Integra à subjetividade. Outro nome para isso é fetiche. O fetichista é aquele que se deleita na fantasia, na pura imagem que já perdeu totalmente sua referencialidade, omitindo uma verdade insuportável.

Com isso, passamos a entender porque chavões criados pela grande mídia, como “O caçador de marajás” na campanha de Fernando Collor de 1989, foram rapidamente assimilados. A bola da vez agora é o combate à corrupção. Nessa lógica maniqueísta de campanha e de apelo da grande mídia, o cientista político Juarez Guimarães mostra, no artigo “Após o ‘caçador de marajás’ o ‘caçador de corruptos?’”, publicado no portal Carta Maior, que a campanha de Aécio Neves “surge como um insulto à inteligência e à consciência republicana do brasileira”. Estamos de pleno acordo. Mas não é pelo paradigma do sujeito da razão que podemos entender os rumos dos votos. E isso independe do resultado das eleições. Ora, quando a campanha fica centrada no tema corrupção, é a própria política que fica de fora, já que o debate é reduzido a um gesto antipolítico.

Há pouco mais de um ano, o país foi sacolejado pelos protestos de junho, que poderiam ser interpretados como um sinal de esgotamento da democracia representativa. O tema não entra na pauta desta disputa política – nem da grande mídia. O que se vê, novamente, é a tentativa de construção de um novo herói. Basta um rápido olhar para o comportamento na imprensa para constatar que o discurso publicitário impera, contraditoriamente, no jornalismo. Na revista Veja (11/10), Aécio Neves aparece como se estivéssemos olhando para uma imagem de santinho de campanha política. Na revista Época, de 20 de março de 2006, o santinho foi Geraldo Alckmin com uma linha de apoio que o relacionava a Juscelino Kubitschek, período posterior ao ministério JK exibida pela Rede Globo, em um longo processo de construção do que deveria ser, para a Globo, o novo herói da nação. Ou, ainda, a clássica edição da Veja de 1989, com a manchete: “Collor de Mello – O caçador de marajás”.

A monstruosidade entra em cena

Falar o que vem a mente. Princípio da associação livre é também um dos fundamentos que faz da disposição analista e analisado – este segundo deitado no divã de costas para o primeiro, um método para o início da clínica após as entrevistas. Sem o contato olho a olho, evita-se que a transferência entre paciente e analista interfira nas associações, ou seja, no falar tudo que vem a mente. Ora, é evidente de que não há nenhuma relação da psicanálise com o modo como os sujeitos interagem nas redes sociais. Mas há, porém, em comum, a força deste princípio, de que, quando o outro de carne e osso está ausente no campo de visão, o sujeito projeta-se como se fosse o centro de todo o poder, deixando, muitas vezes, expressar toda a sua monstruosidade. Não por acaso, gestos de homofobia, racismos, xenofobia invadem as redes socais.

Ataque aos nordestinos

 “Nordestino não é gente, faça um favor a SP, mate um nordestino afogado”. “Médicos do Nordeste, causem um holocausto por aí.” Esta segunda abominação moral e cognitiva (para usar os termos da filósofa Marilena Chauí) é de uma integrante do grupo do Facebook “Dignidade médica”, que ganhou repercussão em diversos artigos condenando essa prática. O discurso assemelha-se ao do nazismo sugerindo “holocausto” ao nordestino. Acrescido ao depoimento do ex-presidente da república, Fernando Henrique Cardoso, de que os votos expressivos para a candidata Dilma Rousseff à reeleição mostram que o nordestino é “menos informado”. Vimos um alinhamento entre ambos discursos que permitiu incendiar mais ainda o preconceito.

Não há dúvida de que não se pode reduzir essa forma de pensamento às pessoas que moram na região A ou B do país, mas trata-se de um modo de subjetivação que tem mais expressão em determinados lugares. O que se percebe pelas evidências é que há um movimento expressivo, e isto não é de hoje, que caminha para a naturalização e a afirmação de uma superioridade de grupos que, no fim das contas, passa pela assepsia do capital, ou seja, quem é pobre é “malandro”, “burro”, “desinformado”, “vive nas costas do governo” etc.

Não foi justamente o Sudeste e o Sul onde se concentraram o maior número de votos para Aécio Neves e Levy Fidelix? Logo Fidelix, o homem do “aparelho excretor”. Não é função do sistema excretor eliminar o que o corpo não necessita? Vejamos outra violência: “Nordestinos do caralho, tão com medo de tirar a merda do bolsa família”. Não seria a expressão máxima do reacionarismo querendo transformar os nordestinos na matéria produzida pelo aparelho excretor? Esse é um dos motivos pelos quais é suportável para aqueles que se acham superiores debater corrupção de uma forma rasa, para não olhar no espelho e deparar-se com sua própria monstruosidade. Ora, a violência subjetiva não deveria estar em pauta no debate político?

É evidente que muitos eleitores de Aécio não compactuam com essas atrocidades que circulam pelas redes sociais, mas é de pensar-se: se os internautas que expressam ódio pelo nordestino são eleitores de Aécio, já que os votos à Dilma foram o estopim dessa violência, é porque estão dadas as condições, no mínimo subjetivas, para esse apoio.

Se Zizek dominasse o mundo

Slavoj Zizek, em um pequeno texto que tem de ser lido como uma ironia (como piadas extravagantes no qual o filósofo termina se perguntando se não vivemos em um mundo como este), deixa pistas de como governar um mundo marcado pela desigualdade. Publicado no Blog da Boitempo, em “Se eu dominasse o mundo” Zizek instituiria no final de suas medidas extravagantes um ritual canibalesco entre amigos, de que no início de um diálogo dever-se-ia primeiro dedicar alguns minutos “com xingamentos grosseiros e sem pudor, ofendendo uns aos outros”. É evidente que não é disso que se trata nas redes sociais, já que não estamos falando de amigos e não se ouve o outro na sua diferença para depois iniciar um diálogo civilizado, que pressupõe trocas de ideias.

Contudo, outras situações descritas por Zizek são tranquilamente relacionadas à nossa realidade, como a de simular um golpe (quando, às vezes, ouvimos que o governo atual quer implantar o comunismo, cercear a liberdade de imprensa, depravar a sociedade com circulação de apostilas que fazem apologia a homossexualidade etc.).

Como entender esse fenômeno de ódio aos nordestinos, que não deixa de ser ódio à democracia? Um caminho seria pelo processo civilizador que tem a função de cobrir totalmente nossos desejos mais íntimos, e o que não cobre fica sacolejando a ponto de que, quando consegue chegar à superfície (ou passar a barreira da repressão), aparece como uma monstruosidade (sintoma). Assim, seguindo a ironia de Zizek, deveríamos ter sessões rotineiras para extravasar sentimentos, como um ritual sucessivo de catarse.

Catarse fascista

As redes sociais poderiam ocupar este lugar de grande catarse, mas, infelizmente, é uma catarse fascista, no sentido de que não é dado o direito do outro existir na sua diferença. Mailena Chauí, em entrevista à Rádio Brasil Atual, definiu bem a violência fascismo: “o que caracteriza a violência fascista é não suportar a diferença, a alteridade, e partir para a eliminação”.

O racismo, a xenofobia, a homofobia etc. são alimentados por uma dedução simplista que se movimenta nobackground da racionalidade técnica: “se pobre tem baixa escolaridade, é desinformado pelo simples fato de não ter capacidade para compreender a realidade”; ou, ainda, “pago meus impostos para sustentar um bando de vagabundos”. Essas não seriam deduções para alimentar e naturalizar uma superioridade, já que o que se combate no fim são os programas sociais que tem a função de criar condições favoráveis para que sujeitos em posições desfavoráveis passem a ter as mesmas oportunidades? Não seria esse o motor do ódio, por levar o outro ao menso nível dos que se consideram superiores? Ora, isso fere o próprio falo do exibicionista, ao ter sua self colocada na vala comum.

Em certa medida, as redes sociais têm se transformado ora em um espaço de catarse fascista, ora em um espaço de exibicionismo – como se o falo (que tem hoje seu principal significante metonímico – as selfies) precisasse ser frequentemente contemplado e mediado pelo grande espelho, o ciberespaço. Quando a potência do exibicionista é colocada em xeque, vê-se todo tipo de violência (a impotência é a verdade aterrorizante).

O consumo da própria imagem

O sujeito consumidor é o alvo. Todo mundo busca fama. Quanto mais curtidas no post, mais potente. Descartes cairia de joelhos. Do “penso logo existo” para o “sou visto logo existo”. Quando a imagem é arranhada, o monstro ganha espaço. O que sustenta essa monstruosidade? Não há dúvida, vem da outra cena (inconsciente) que faz transpor os conteúdos recalcados.

Enquanto o canibalismo fascista é potencializado, os usuários das redes sociais são alvos de pesquisas, como se o trajeto feito no ciberespaço deixasse marcas suficientes para direcionar uma mensagem, oferecer um produto, receber um estímulo para bajular seu ego e cativá-lo. A síntese mais estarrecedora foi apresentada na abertura da reportagem “Manipulados pela internet”, publicada na IstoÉ (9/7), que reproduz um diálogo com Mark Zuckerberg, criador do Facebook, em 2004, quando ele ainda era estudante: “– Se você precisar de informações sobre qualquer um de Harvard, me pergunte. Tenho mais de quatro mil e-mails, endereços e fotos. – Como você conseguiu isso? – perguntou o colega. – Eles confiam em mim. Estúpidos”.

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José Isaías Venera é jornalista, professor universitário e doutorando em Ciências da Linguagem pela Unisul (SC)