Um espectro ronda o planeta. Agora não é o espectro do comunismo. É o espectro eletromagnético – congestionado, loteado, disputado, central na vida dos terráqueos. Com a popularização dos smartphones, todos começam a ter consciência desse problema que antes parecia apenas científico, regulamentado por agências técnicas, sem passar por parlamentos. Hoje, cada vez mais gente transmite/recebe quantidades cotidianas cada vez maiores de dados. Trocas de vídeos de centenas de megabytes são ocorrências banais, visíveis não só em telas de tamanhos variados, mas em planos 4G, 5G e boletos mensais. Li que as operadoras brasileiras vão acabar com aquela prática de transmissão mais lenta, sem custos adicionais, depois que limites contratados são ultrapassados. Sinal de que nem a banda mais larga do mundo será suficiente para saciar nossos desejos culturais de altíssima definição? Contra a abundância dos HDs e dos processadores, esbarramos na escassez espectral? Vamos ter que racionar água e ondas eletromagnéticas?
Semanas atrás houve leilão para novas faixas 4G no Brasil. Na próxima quinta-feira, o governo dos EUA leiloará setores de uma faixa de espectro chamada AWS-3, realocando frequências até agora utilizadas principalmente para comunicações militares. Concorrentes como as operadoras AT&T e Verizon estão na disputa que prevê lances iniciais de mais de US$ 10 bilhões. Explicação básica: espectro é bem público. São os governantes de cada país que decidem quais as regras, incluindo preços, para sua utilização. É fonte de arrecadação considerável. E, como geralmente é também multibilionária, poucos “players” podem entrar na concorrência. Resultado: duas ou três empresas tendem a monopolizar o acesso para as “estradas” que possibilitam qualquer comunicação.
A escassez também é gerada por essa realidade comercial. Hoje todos podemos produzir qualquer tipo de conteúdo, mas para essa produção circular dependemos de quantidade ínfima de operadoras, de fabricantes de aparelhos e de provedores de serviços (inclusive para armazenar nossos dados mais e mais pesados). A nuvem também tem poucos donos, outros bilionários (Google, Amazon etc.), que podem manter parques de milhares de computadores capazes de guardar com segurança os trilhões de vídeos, fotos, áudios, textos criados todos os minutos. Estranho: a internet começou descentralizada, mas paradoxalmente caminha para ser ambiente perigosamente centralizado.
Propostas ousadas
Sim, é assunto árido, difícil, pois depende de conhecimentos técnicos de ponta. Porém, como sempre nos ensinou Bruno Latour, as questões políticas mais importantes hoje envolvem ciência cabeluda: genoma, clima, transgênicos, clonagem, vírus (naturais e artificiais) e tanta coisa complicada mais. Não adianta: sem estudar isso tudo, deixamos nosso futuro na mão de políticos, ou os políticos deixam na mão de técnicos que não foram eleitos por ninguém para determinar o rumo do mundo. Então precisamos esquecer a preguiça e prestar atenção nos sinais de resistência que felizmente aparecem em muitas frentes.
Por exemplo: quem determinou mesmo que o espectro tem que ser escasso? Há pesquisas realizadas no mundo inteiro (inclusive no CPqD brasileiro) sobre rádio cognitivo (ninguém precisa se assustar com esses nomes), que apontam para a possibilidade de compartilhamento inteligente do espectro. Roteadores saberão identificar frequência de onda sem utilização naquele momento, redirecionando seu tráfego de dados para lá. Se seguirmos esse caminho, não haverá mais donos únicos para cada faixa.
Outras experiências: desenvolvimento do conceito/prática peer-to-peer como alternativa, para a invenção de uma nuvem compartilhada ou para parques públicos de computadores (vide o projeto Our Grid, da Universidade Federal de Campina Grande, lançado em 2004). Além disso, há cada vez mais projetos de máquinas “abertas”, com sucesso crescente, como o Arduino ou o Raspberry Pi, usados até por crianças (como o Júnior, computador da novela “Geração Brasil”). Uma mistura disso tudo tem o início de seu financiamento coletivo marcado para amanhã: chama-se Indie, e inclui a criação de nuvem (vai se chamar “estratosfera”), sistema operacional, linguagem de programação, cliente de sincronização entre aparelhos e muito mais, tudo isso livre e desembocando no lançamento de um smartphone aberto, com serviço no qual nossos dados não serão propriedade de nenhuma empresa. Impossível? Utopia liberal, anarquista ou comunista?
Bom ficar de olho nesse crowdfunding. Não é prudente descartar essas propostas ousadas como piração. Afinal, menos de duas décadas atrás, o Google parecia ideia pirada de frequentadores do Burning Man.
******
Hermano Vianna é colunista do Globo