Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A verdade oculta das ‘empresas de garagem’

A tecnologia vem do Vale do Silício e o Vale do Silício vem de uma garagem. A lenda é simples assim; complicado é decidir qual garagem. Há a do número 367 da Addison Avenue, em Palo Alto, onde em 1938 William Hewlett e David Packard se trancaram para fazer experiências com dispositivos eletrônicos e onde hoje uma placa diz: “Local de nascimento do Vale do Silício”. Ou a do número 2066 da Crist Drive, em Los Altos, onde Steve Jobs e Steve Wozniak construíram o primeiro computador Apple que foi vendido ao público em 1976. E há ainda a do número 232 da Santa Margarida Avenue, em Menlo Park. Essa foi alugada em 1998 por dois jovens, Larry Page e Sergei Brin, para desenvolver uma jovem empresa chamada Google. A garagem continua surpreendentemente intacta hoje. Com o tapete azul que a então proprietária da casa, Susan Wojcicki, hoje executiva-chefe do YouTube, instalou para que os inquilinos se sentissem mais à vontade. A mesa de pingue-pongue onde se distraíam. Tudo disposto para que o mito pareça real e nada relembre que, na realidade, o Google foi fundado dois anos antes; já havia arrecadado mais de um milhão de dólares de vários investidores; e a economia que representava alugar uma garagem em vez de um escritório era risível. E mais, em janeiro de 1999, depois de apenas cinco meses pisando no tapete azul, os nove empregados do Google se mudaram para escritórios convencionais. Mas a garagem está ali, é propriedade da empresa desde 2006, e os lucros que gera em seu mito institucional são incalculáveis.

Esse é o poder mágico da garagem. Um empresário que o menciona não está apenas evocando o trabalho duro com o qual Hewlett e Packard ergueram um império tecnológico a partir de seu escritório improvisado em Palo Alto. E também não está só relembrando os intrépidos visionários da Apple a quem o mundo acabou dando razão. Está-se somando a uma longa tradição a que pertence Walt Disney, que fundou sua empresa na garagem de seu tio Robert em 1923 e que mais tarde usou dois estacionamentos como estúdios de animação improvisados. Ou Harold Matson e Eliot Handler, que em 1945 vendiam molduras de madeira para fotos e, com o material que sobrava, fabricavam brinquedos em sua garagem. Fundiram seus nomes e, sob a marca Mattel, criaram a Barbie e tornaram-se uma multinacional de primeira grandeza. Ou Michael Dell com a empresa que leva seu sobrenome. Ou Jim Casey, da UPS. O mito da garagem transmite uma série de imagens e valores admiráveis. Empreendedorismo. Geração espontânea de ideias brilhantes. Trabalho duro. A liberdade de ser seu próprio chefe e desenvolver sua própria visão. A ingenuidade de pensar que tudo vai dar certo e a humildade de continuar trabalhando quando dá certo. A garagem não é só um enclave geográfico. “É um estado mental. É a rejeição do ‘statu quo’. É afirmar: Não preciso de dezenas de engenheiros com mestrado para fazer frente à concorrência”, explica Guy Kawasaki, ex-funcionário da Apple e autor de vários livros sobre empreendedorismo no Vale do Silício. A garagem é um símbolo. Um aviso do gênero ao qual pertence a origem de cada empresa. É o sonho americano. E também é mentira.

Os homens por trás da cortina

“É muito romântico e muito individualista”, protesta Dan Heath, jornalista do Fast Company e co-autor, com seu irmão Chip, de vários livros sobre estratégias empresariais. “Falam-nos do mito da garagem e visualizamos dois caras que criam algo brilhante em segredo e depois o mostram a um mundo mais que receptivo. Quer dizer, dá uma ideia errônea do que é preciso para vencer. Se quer começar uma empresa, suas tarefas são encontrar trabalho, aprender como funciona a indústria e fazer contatos. Claro, é muito mais enfadonho que uma ideia maravilhosa desenvolvida em uma garagem”.

Poucos mitos da garagem resistem a um mínimo de escrutínio. Todos acabam revelando os fatores clássicos que menciona Heath. Gente bem conectada com boas amizades, experiência em outras empresas e mais capacidade organizativa que visão. Hewlett e Packard, por exemplo, conheceram-se como estudantes em Stanford no ano de 1930, em plena Grande Depressão, quando montar uma empresa era impensável. Packard trabalhou vários anos na General Electric, onde aprendeu de tudo. E mais, um de seus amigos ali, John Cague, terminaria como professor universitário e direcionaria para seu negócio todos os alunos promissores, o que foi determinante no futuro império Hewlett Packard (adiante, HP).

O mito original da Apple também esquece aquela ocasião, em 1967, quando um menino de 12 anos telefonou para os escritórios da HP. Era Steve Jobs e queria componentes para construir um contador de frequências. Hewlett ficou tão impressionado com o menino que lhe ofereceu um emprego de verão em seu próspero negócio. “O que aprendi ali foi a base do que seria Apple”, confessou Jobs em uma entrevista em 2003. Assim pôde recomendar seu sócio, Steve Wozniak, apresentado por um amigo comum, que entrou para a HP em 1973, enquanto ele continuava sua formação na recém-criada Atari. Todos esses elementos seriam fundamentais em 1976, quando a Apple foi fundada. Wozniak percebeu que o computador que tinha em mente não interessava à HP. Jobs trouxe da Atari o terceiro fundador da empresa, Ronald Wayne. Naquela altura, já não eram jovens brincando com uma ideia. “Ninguém quer ouvir a história dos rapazes ricos que se reúnem no Marriott para idealizar um plano de negócios. Isso não é tão romântico”, escreve Heath. E não é preciso voltar muitas décadas para encontrar elaborados mitos de garagem. O do Facebook, por exemplo, é possivelmente o mais sofisticado: um jovem estudante, Mark Zuckerberg, idealizou um produto em seu dormitório em Harvard ajudado por amigos e, com poucos intermediários, o mundo deixou-os ricos. Esta variação não esconde os elementos menos populares, mas os disfarça. Harvard aparece como um centro rançoso e resistente à mudança, não como a universidade para onde vão as elites. Os amigos de Zuckerberg aparecem como estudantes entusiasmados, não jovens ricos com vontade de investir em algo.

Também se conta que em 2005 dois amigos, Chad Hurley e Steve Chen, gravaram um terceiro amigo em uma festa e, ao ver quanto era complicado jogar o material na Internet, decidiram fundar o YouTube. Não se revela que Hurley tinha sido um dos primeiros empregados no PayPal e até havia desenhado o seu logo. E que o seu sogro, James Clark, é o fundador do Netscape Navigator. Ou seja, os criadores do YouTube eram mais de dois e tinham conexão direta com investidores. Meses depois, Steve Chen confessou à revista Time que a história da festa tinha sido “enfeitada” para que soasse melhor.

O mito feito realidade

A fábula é cada vez mais popular. Em 2005, dois professores da Universidade da Califórnia fizeram um estudo entre seus alunos: 89% deles podiam citar alguma empresa criada desse jeito. Somente 48% das empresas são criadas dessa maneira, mas o estudo estima que as aparições dos mitos de garagem na imprensa se multiplicaram 250% entre 1980 e 2000. E, como qualquer mentira contada por vezes suficientes, está se aproximando da realidade. Quando a Comissão Nacional de Empreendimento, dos EUA, estudou as raízes das maiores empresas do país no século XX concluiu: “Em 1917, os empreendedores costumavam ser aqueles aos quais se havia negado o sucesso por outras vias. Em 1997, empreendem aqueles que podem se permitir o risco. O valor da experiência prévia parece ter diminuído”. Nenhuma das empresas estudadas, por certo, tinha sido criada do nada.

O mito dá cara a dois motores tangenciais, mas inesgotáveis, do capitalismo atual: o sonho americano, segundo o qual um homem pode chegar ao ponto mais alto somente trabalhando duro; e o ego da indústria tecnológica, obcecada pela ideia de invadir o mundo. É o que acontece com os mitos atraentes demais. “Quanto mais você conta uma história, mais evolui”, explica Heath. “Os indivíduos vão sendo ressaltados, não as organizações. Os momentos particulares, não o progresso gradual. Creio que a história do YouTube se tornará ainda mais triunfal com o tempo. Mais majestosa.” Contanto que ninguém acredite nela.

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Tom C. Avendaño, do El País