No auge da antiga União Soviética, surgiu uma expressão para descrever os intelectuais ocidentais crédulos que iam visitar a Rússia e deixavam de notar os custos humanos e outros da construção da utopia comunista. A frase era “idiotas úteis” e se aplicava a muitas pessoas que deveriam ter mais consciência.
Hoje eu proponho um novo termo, análogo, mais adequado à era em que vivemos: hipócritas úteis. Eles são você e eu, gente, e é como os senhores do universo digital nos veem. E eles têm motivos bastante bons para nos ver dessa maneira. Eles nos ouvem reclamar sobre privacidade, segurança, vigilância etc., mas notam que apesar de nossas queixas e suspeitas parecemos nada fazer a respeito. Em outras palavras, dizemos uma coisa e fazemos outra, o que é uma definição de hipocrisia tão boa quanto se poderia esperar.
Isso parece duro, eu sei, mas os dados o confirmam. No momento, grande parte dos dados vem dos Estados Unidos, mas não creio que as coisas sejam muito diferentes na Grã-Bretanha. Algumas das informações mais confiáveis sobre o comportamento das pessoas na rede mundial vêm do Projeto de Vida Americana e Internet do instituto Pew, que realiza pesquisas regulares sobre o uso da internet pelos americanos. Na quarta-feira (12/12), o projeto publicou as conclusões de uma pesquisa sobre as percepções do público sobre privacidade e segurança na era pós-Edward Snowden. E o que os pesquisadores descobriram é bastante sério.
As conclusões foram muito bem resumidas pelo jornal The New York Times como “os americanos dizem querer privacidade, mas agem como se não quisessem”. Ou, para colocar de modo menos sucinto: “Os americanos dizem que estão profundamente preocupados com a privacidade na web e em seus celulares. Eles dizem que não confiam nas empresas de internet ou no governo para protegê-los. Mas continuam usando os serviços e divulgando suas informações pessoais.”
A pesquisa Pew revela que a desconfiança das comunicações na rede e por telefone aumentou depois das revelações de Snowden: 81% dos entrevistados não se sentiam seguros usando a mídia social para compartilhar informação particular. Mais de dois terços deles se sentem da mesma maneira sobre bate-papos online, 59% sobre mensagens de texto, 57% sobre e-mails e 46% sobre conversas em celulares. Até as linhas fixas são suspeitas, com 31% dos entrevistados sentindo-se pouco à vontade com elas também.
Os que responderam à pesquisa disseram que desconfiavam igualmente do governo e das grandes companhias de internet. Mas mais da metade deles se declarou disposta a “compartilhar” informações sobre si mesmos com as empresas em troca dos chamados serviços “gratuitos”, e mais de um terço aceita que esses serviços são mais “eficientes” devido à capacidade de explorar essa informação pessoal.
Sem uso
Oitenta por cento dos que usam os sites de redes sociais dizem que se “preocupam” sobre anunciantes e terceiros que acessam os dados que eles divulgam nessas redes. Na verdade, de modo geral parece haver uma desconfiança generalizada entre os adultos sobre a segurança dos canais de comunicação online, e não há um único canal eletrônico que a maioria dos usuários americanos considere “muito seguro” quando partilha informação pessoal com outra pessoa ou organização.
De modo geral, portanto, o que se depreende da pesquisa é que a vasta maioria dos americanos considera os canais online e telefônicos um pouco inseguros, no melhor dos casos. Mas essas mesmas pessoas continuam usando esses canais. Isso sugere que a maioria dos usuários da internet sofre o que os psicólogos chamam de “dissonância cognitiva”, isto é, “a situação de ter pensamentos, crenças ou atitudes incoerentes, especialmente no que se refere a decisões comportamentais e mudanças de atitude”.
Então temos um mistério: por que continuamos a usar canais de comunicação nos quais não confiamos? A resposta convencional é que não temos alternativa. Em algumas áreas, somos apanhados pelo poder dos efeitos da rede – a força que convence as pessoas de que hoje elas precisam estar no Facebook, mesmo que não gostem realmente disso. Por exemplo, histórias de adolescentes que sofrem agressões porque não usam o Facebook não incentivam a independência, propriamente. Em outras áreas, por exemplo, as pessoas usam os serviços de webmail oferecidos por Google, Microsoft ou Yahoo porque não querem pagar por serviços de correio eletrônico.
E embora existam tecnologias para proteger a privacidade, por exemplo, a criptografia de e-mails, a maioria das pessoas não as usa porque são difíceis de implementar, e afinal a privacidade não é tão importante para elas quanto dizem.
Nesse sentido, será que o que estamos recebendo não é a internet que dizemos querer, e sim a internet que merecemos? A tecnologia mostra um espelho da natureza humana, e o que vemos nele são… bem, hipócritas úteis [leia mais em Guardian.co.uk].
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John Naughton, do The Observer