Quem manda na internet chinesa? Boa pergunta. O sino-americano Jason Ng, professor de ativismo digital na Universidade Columbia, em Nova York, ainda não sabe como respondê-la. “Seria simplista dizer ‘ah, foram aqueles comunistas do partido’. É mais complexo do que isso.”
Mas uma coisa é certa para Ng: quem quer que dê (ou tire) a palavra final, não tem muito senso de humor ou tem até demais. O que talvez explique por que já foi impossível buscar por “fetiche por pé”, “meia-calça” e “toucinho peludo” no Sina Weibo, a rede social predileta num país com cerca de 600 milhões de conectados –três vezes a população do Brasil.
Em 2013, Ng compilou 150 termos “proibidões” no livro “Blocked on Weibo: What Gets Suppressed on China’s Version of Twitter and Why” (Bloqueado no Weibo: o que é suprimido na versão chinesa do Twitter e por quê; The New Press).
O pesquisador selecionou 700 mil palavras em mandarim a partir do Wikipedia, “uma base melhor do que o dicionário por incluir apelidos e termos coloquiais”. Criou então um software que, 24 horas por dia, ao longo de dois meses, detectou quais palavras caíam na malha fina da internet chinesa.
Chegou a 1.000 expressões (0,14%) e explorou as 150 que julgou mais simbólicas. Na prática, as palavras podem ser postadas pelo internauta, mas uma busca por elas levaria a zero resultados e ao recado: “Com base em leis e regulamentos chineses, os resultados da pesquisa não foram mostrados”.
Os termos não são exilados para sempre. Às vezes, só ficam bloqueados em períodos sensíveis. Próximo ao aniversário do massacre da praça da Paz Celestial, por exemplo, a rede social baniu referências a “6/4” (4 de junho em inglês), “LXIV” (64 em algoritmos romanos) ou “oito ao quadrado” (“¦64). Até o videogame Nintendo 64 entrou no balaio. “Mas isso provavelmente foi só alguém fazendo cagada”, afirma Ng.
Proibidão
No quesito sexo, os censores do Weibo parecem ter sido selecionados pelo RH da Liga das Senhoras Católicas. O que é considerado perversão pode acabar no limbo virtual. Daí banirem temporariamente expressões como “liànzú” (podolatria), “zhao xiaojie” (“procurando por uma garota”, eufemismo para prostituição), “mimi” (onomatopeia do miado e também sinônimo para “tetas”) e “kùwà” (meia-calça, considerada sexy demais).
“Wúmáo”, que em português significa “sem pelos”, entrou no índex como coisa de quem está atrás de genitálias depiladas. Já “hairy bacon” (toucinho peludo) é um assunto cabeludo por outro motivo.
Trata-se de um pseudônimo para o corpo embalsamado de Mao Tse-tung (1893-1976), explica Ng enquanto morde um sanduíche de presunto no Hungry Ghost, café no Brooklyn nova-iorquino.
Ao contrário do que o Ocidente pensa, o dia a dia não se resume a uma incessante caça de gato e rato entre governo e ativistas, diz Ng. Na maioria das vezes, a decisão de bloquear esta ou aquela palavra para seus usuários vem do próprio Weibo.
“A censura é bem menos óbvia do que parece e muitas vezes parte das próprias empresas. Assim como o Facebook contrata gente para saber que tipo de conteúdo deve ser deletado”, explica o pesquisador.
Babygate
Chineses adoram um bafo. Em 2011, por exemplo, o de Baby Guo Meimei, uma linda menina de 20 anos, era tão saboroso quanto deletável.
Baby, que lembra a Mulan da Disney no guarda-roupa da Miley Cyrus, exibia sua vida “V-Vip” (very, very important people) para quase dois milhões de seguidores no Weibo.
Ela postava selfies num closet para bolsas da grife Hermès. Posava com seu “pequeno touro”, o Lamborghini laranja que dirigia no Sul. O Maserati branco para as tardes de Pequim era o “pequeno cavalo”.
Não demorou para Baby cair desse cavalo. Ao mesmo tempo em que divulgava a filosofia “beijinho no ombro” de vida, dizia ser gerente na Cruz Vermelha chinesa. Um internauta apontou que a jovem, na verdade, era a amante bancada por um conselheiro da entidade.
O Weibo não gosta de escândalos. Sobretudo um que possa colocar o Partido Comunista Chinês no olho do furacão: cabe a ele regular a Cruz Vermelha, seriamente abalada após as peripécias de Baby.
Saldo: volta e meia, a busca por “fu nu” (mulher rica) no Weibo volta zerada. O termo é usado pejorativamente para criticar a riqueza obscena de esposas, amantes e filhas de empresários e funcionários públicos.
“Quando a província Sichuan, dizimada por um grande terremoto em 2008, experimentou tremores mais mortais em 2013, o nome de Meimei reapareceu on-line. Sua corrupção virou advertência para quem quisesse doar a instituições de caridade do Estado”, diz Ng, um tipo magro que cultiva um ralo bigode sob os óculos de aro preto.
Para Ng, a politização em larga escala do Weibo é uma fantasia ocidental. A maioria dos internautas prefere compartilhar no Weibo (“microblog” em mandarim) pequenezas cotidianas, como o que comeu no café da manhã (macarrão cozido é bem popular), imagens fofinhas de filhotes de gato e panda e fofocas sobre celebridades. Não muito diferente do que se vê no Brasil.
Boa parte da juventude chinesa, mesmo viciada em web, nunca viu a ocidentalmente famosa foto do homem que desafiou sozinho uma fileira de tanques em 1989 –Ng cita uma pesquisa informal em que apenas 15 de cem universitários de Pequim souberam identificar a imagem icônica. É como se, em 2026, menções ao “9/11/2001” fossem tão memoráveis para os Estados Unidos quanto um quadro do aspirante a pintor George W. Bush.
O “Babygate”, contudo, tinha sex appeal para envolver o “cidadão comum” na crítica massificada ao governo.
“Nem todos os internautas escrevem sobre política, mas a internet ainda pode ter um impacto político muito grande na China”, diz Emily Parker, autora de “Now I Know Who My Comrades Are: Voices from the Internet Underground” (Agora eu sei quem meus camaradas são: vozes da internet underground; Sarah Crichton Books, 2014).
“Mesmo sem fazer uma revolução, ela pode transformar a China. Não vai criar instantaneamente a democracia, é claro, e os grupos nacionalistas também estão on-line. Mas a internet está proporcionando maior acesso à informação e a sensação de que você não está sozinho.”
Em seu livro, Parker, ex-editora do “New York Times” e colaboradora do “Wall Street Journal”, narra como a internet vem transformando a vida na China a partir de histórias como a de Zhao Jing.
Em 1999, ele era o recepcionista que entreouvia nos corredores do hotel sobre o protesto de estudantes que o governo literalmente atropelara numa praça na capital do país, dez anos antes –episódio que nenhum jornal gastara tinta para divulgar.
Acabou chegando em suas mãos um dossiê com fotos e relatos do que aconteceu na praça da Paz Celestial. Sob o codinome Michel Anti, ele foi fundo no tema e acabou criando seu próprio blog com críticas ao Partido –fechado em 2005 pela Microsoft, que o hospedava.
“Perguntei-lhe por que a internet era importante na China, e ele disse: ‘Porque agora eu sei onde meus camaradas estão’”, relata Parker.
Em 2000, o então presidente americano, Bill Clinton, comparou a censura imposta aos “camaradas” chineses à tentativa de pregar gelatina na parede.
Quinze anos depois, a autocensura virou uma poderosa ferramenta para silenciar vozes dissidentes. Atinge o Sina Weibo, que prefere pisar em ovos a pisar no calo do governo, e também o internauta receoso de ser convidado para “tomar um chá” com a polícia. Por ora, diz Jason Ng, “a China tem tido sucesso em manter a gelatina longe do chão”.
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Anna Virginia Balloussier, da Folha de S.Paulo