Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Fetiche da ruptura

Por favor, não mate o mensageiro, neste caso, a colunista. Não faço mais do que transmitir o recado de observador mais instruído e refinado. E o recado está num novo livro do cientista político e empresário do Vale do Silício Andrew Keen. O título na capa é: A Internet Não É a Resposta. O título que ele queria e foi previsivelmente censurado pela editora era An Epic F*#@ing Failure. Meus sais!, pedirá o sofrido consumidor brasileiro que economizou para comprar o iPhone mais caro do mundo.

Calma. A internet ainda não é uma resposta, explica Keen, apelidado de anticristo cibernético por causa de seu best-seller de 2007, O Culto do Amador, em que denunciava a falsa democratização digital da cultura ou um mundo em que a massa apoia a invasão do Iraque e a Britney Spears.

A palavra ludita foi cunhada no começo do século 19 quando artesãos britânicos protestaram contra a perda de trabalho para as máquinas na indústria têxtil. No século 21, ludita passou a ser o xingamento preferido contra qualquer pessoa que ouse questionar, não o fato consumado, mas a direção e os benefícios da revolução digital. Ao contrário dos primeiros empresários da revolução industrial ou dos Vanderbilts, Carnegies ou Rockefellers do capitalismo selvagem americano, os donos da nova economia insistem numa indumentária narrativa para combinar com o moletom com capuz de Mark Zuckerberg. O fundador do Facebook, que declarou pertencer a uma geração que não se importa com privacidade, ao chegar aos 30 anos e aos US$ 30 bilhões, não comprou apenas uma casa em Palo Alto. Comprou mais três casas adjacentes para se proteger da curiosidade de vizinhos.

Esta hipocrisia, escreve Andrew Keen, domina a propaganda da identidade libertária do empresário digital, tipicamente um homem branco. O moletom com capuz sugere adolescência, mas, aos 50 anos de sua invenção (e aos 25 da criação da web), é hora de cobrar maturidade da internet. O argumento de Keen não é novo, outros visionários do Vale, como Jaron Lanier, já apontaram a óbvia lacuna entre a promessa igualitária e a realidade monopolista que destrói empregos. A novidade pode estar no fato de que a discussão vai deixando de ser tabu até entre venture capitalists.

Um espantalho utilizado na nova economia é a regulamentação. Keen lembra que, se não houvesse ingerência regulatória na economia, teríamos crianças de 10 anos trabalhando em fábricas. De fato, o Google é filho da interferência das leis antitruste contra o monopólio da Microsoft. Mas o Google agora acumula muito mais poder do que a Microsoft e, como ela, acredita o autor, se tornou um obstáculo à inovação.

Mais responsabilidade

Dois exemplos mais visíveis e bem financiados de ruptura e “economia compartilhada” do momento são o Airbnb, o site de hospedagem privada que ameaça a indústria hoteleira, e o Uber, o sistema de táxis privados que já comprou brigas regulatórias em vários continentes, sem contar as denúncias de gangsterismo contra a concorrência, espionagem de jornalistas e o ocasional motorista recém-saído da cadeia que assalta um passageiro. Andrew Keen é especialmente crítico do Uber por trazer para algo de utilidade pública, transportes, insegurança em nome de conveniência e por explorar a ausência de regras em nome de um falso benefício coletivo. Que o digam os moradores de Sydney, Austrália, que fugiam do recente atentado terrorista ao café, quando foram vítimas do que a companhia chama de surge pricing – a cotação da viagem pela quantidade de procura, algo que colocaria qualquer companhia de táxi regulada na mira de uma investigação criminal. A indignação em Sydney foi de tal ordem que o Uber ofereceu transporte grátis durante várias horas. A única coisa verdadeiramente compartilhada – e apenas por um punhado de investidores – serão os US$ 40 bilhões quando a companhia fizer uma oferta pública de ações.

Até a expressão startup sugere um Steve Jobs na garagem quando, de fato, se você, empregando apenas 50 pessoas, vendeu sua companhia para o Facebook por US$ 19 bilhões, ela já saiu da garagem metafórica ou econômica há muito tempo.

A internet, lembra Andrew Keen, foi criada por cientistas e instituições com o bem público em mente. Mas, nos anos 90, o governo americano cedeu a espinha dorsal da internet para os provedores de serviço, na maior criação súbita de riqueza da história. Como resultado, nenhum dos inventores da tecnologia se chama Bezos, Zuckerberg, Page ou Brin, apenas os bilionários. Andrew Keen não tem pronta a resposta para o dilema que descreve, mas acha que a solução terá que passar por todos nós. Ele pede aos empresários digitais menos propaganda triunfalista e mais responsabilidade pelo poder que acumularam. Encaramos a internet como um ecossistema de direitos e do onipresente grátis e não de responsabilidades, ele escreve. Um consumidor não é o mesmo que um cidadão.

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Lúcia Guimarães é colunista do Estado de S. Paulo, em Nova York