Você acorda e consulta o celular para saber a previsão do tempo. No café da manhã, sem desgrudar os olhos do smartphone, mastiga o pão na companhia dos amigos no Facebook, dá uma passada de olhos no WhatsApp ou Snapchat, “curte” fotos no Instagram e lê notícias selecionadas no Feedly. Quando volta da corrida matinal, o tempo e a distância percorridos estão registrados no Runkeeper. Só então você se dá conta de que já consultou meia dúzia de aplicativos e ainda não são 9 da manhã.
Nas próximas horas, vai acessar muitos outros. Quem sabe vasculhe as lojas online à procura de outros desses programas, identificados por ícones tão coloridos que lembram bandeirinhas de festa junina. Cada um deles parecerá vital para seu dia a dia, embora só tenham sido criados pouco tempo atrás. O que está acontecendo? Você contraiu a febre dos aplicativos.
Para seu consolo, não está sozinho. Segundo um relatório da empresa de análises Flurry, que mediu o uso dos celulares entre os americanos, 86% do tempo gasto na internet por meio desses aparelhos é dedicado aos aplicativos – e não aos sites. Enquanto isso, os programas de navegação tradicionais como Chrome, Firefox ou Internet Explorer, que costumavam ser a porta de entrada principal no auge dos computadores pessoais, ficaram com apenas 12%. Por dia, são 2 horas e 42 minutos dedicados aos apps.
“Hoje existem 2,3 bilhões de aparelhos móveis ante 1,5 bilhão de PCs”, compara Edson Rigonatti, da gestora de investimentos em tecnologia Astella. “É uma mudança drástica [no formato] de acesso, mas também de tempo. Há pesquisas mostrando que as pessoas costumam consultar o celular até 180 vezes por dia.”
Para o internauta, a passagem do navegador para o aplicativo parece uma evolução natural, embora não seja. E aqui cabe uma explicação. Frequentemente tratadas como sinônimos, a internet e a web são coisas diferentes. A internet é a rede em si. Já a world wide web, de onde vem o famoso acrônimo www, é um ambiente aberto que permite a quem quiser criar o próprio site e interligálo a outros endereços na rede. É, digamos, o “jeitão” da internet – o formato que a tornou fácil de usar e ajudou a detonar a revolução digital. Um longo intervalo de tempo separa as duas. A internet foi concebida nos anos 1960? a web é bem mais jovem: o primeiro site é de 1991.
A web proporcionou um modelo de produção de conteúdo e prestação de serviços de caráter generalista e somatório. No mesmo site você pode ver notícias, consultar um dicionário, conferir a previsão do tempo, disputar um game online… Mesmo que escolha fazer isso em sites diferentes, a experiência de navegação é fluida e contínua. Com os aplicativos, é diferente. Você precisa escolher o que lhe interessa e baixar cada programa. E eles têm fins precisos – controlar o orçamento, fazer dieta, chamar o táxi… Para usar um, é preciso fechar o outro. A lógica é especialista e fragmentária. Tratase, portanto, de uma ruptura, ainda que pareça uma continuidade natural.
Criada por essa mudança de hábito, a “economia dos aplicativos” deve girar US$ 143 bi no ano que vem – mais que o dobro de 2013 –, segundo o Developer Economics, site americano de análise de mercado voltado a programadores. As lojas de aplicativos movimentaram US$ 15 bi e só a Apple Store repassou US$ 10 bi aos desenvolvedores, o equivalente ao lucro de toda a indústria de cinema nos Estados Unidos.
No início de janeiro, a Apple anunciou que desde 2008 a loja respondeu pela criação de 627 mil empregos no país. Em comparação, Hollywood criou 374 mil. O interesse do consumidor pôs em destaque um personagem até então pouco conhecido: o desenvolvedor de apps. Só nos EUA há 600 mil desses profissionais. Foi nesse país que surgiram quase todas as estrelas do segmento, como o WhatsApp, de mensagens instantâneas? o Instagram, para compartilhar fotos? o AirBnb, para locação de casas e apartamentos? e o Über, de caronas.
Mercado maduro
As grandes empresas entenderam rapidamente a importância de atrair os programadores para suas fileiras, especialmente as donas dos sistemas operacionais móveis, os softwares básicos que rodam em tablets e smartphones. Quanto mais aplicativos populares forem obtidos com exclusividade ou em primeira mão, maiores as chances de aumentar as vendas das lojas online. Recordes sucessivos têm demonstrado a capacidade dessas lojas de atrair público. Em junho, a Apple anunciou ter atingido 75 bilhões de downloads em sua App Store. Já a Play Store, do Google, atingiu 50 bilhões no mês seguinte. As duas empresas são responsáveis pelos sistemas operacionais presentes em 94% dos smartphones e tablets usados no mundo. A Apple detém o iOS, para iPhone e iPad? o Google controla o Android. Corre por fora a Microsoft, com o Windows Phone.
Dependendo do caso, é melhor comprar um aplicativo já testado no mercado do que tentar criar um concorrente. Tempo é essencial e, por isso, as grandes empresas estabeleceram uma corrida pelos melhores produtos. Até quem já está bem posicionado vai às compras. O Facebook é um exemplo. Em média, os usuários passam 17% do seu tempo online no aplicativo da rede social, o que o torna um campeão de audiência. Para expandir sua influência para outras áreas, no entanto, o Facebook não tem economizado. Arrematou o Instagram por US$ 1 bilhão em 2012 e pagou US$ 19 bilhões pelo WhatsApp há um ano. Outros US$ 2 bilhões teriam sido pagos em 2014 pela startup Oculus, criadora do Rift, um dispositivo de realidade virtual.
As empresas de internet não são as únicas a acompanhar com interesse o movimento dos aplicativos. Para as companhias de mídia e entretenimento, há uma chance para “corrigir” as distorções provocadas pela primeira fase da internet. Onde está a oportunidade? A web se disseminou sob a expectativa de que o público poderia obter o que quisesse de graça, com o conteúdo sendo remunerado pela publicidade online. Não foi o que aconteceu. Os usuários ficaram felizes em não pagar nada, mas o fluxo publicitário logo se revelou insuficiente para fazer frente aos custos. E, quando as empresas tentaram cobrar, era tarde demais. Notícias viraram commodities – se um site restringia o acesso, outro ofereceria algo semelhante sem pagar. No caso das músicas e filmes, os internautas aderiram em massa aos sites piratas, mesmo sob o risco de contrair vírus ou ficar vulneráveis aos hackers.
Agora, os aplicativos devolvem, ao menos em parte, o prestígio das marcas. Na web, o leitor nem se lembra do lugar onde viu a notícia do dia, seja uma reportagem sobre o Estado Islâmico, a cerimônia do Oscar ou a crise na Grécia. O emaranhado dos sites não favorece essa distinção. A primeira manchete encontrada parece suficiente, tenha ou não pedigree jornalístico. Com os aplicativos, a dinâmica é outra. O leitor tem de escolher um ou mais apps específicos – ou seja, tem de decidir em quais publicações confia, o que abre uma chance de convencêlo a pagar. Existem, claro, os agregadores de notícia, que reúnem informações de várias fontes. Mas, mesmo nesses casos, a origem da notícia fica mais clara para o usuário, que pode preferir o aplicativo da própria publicação.
Outro ponto importante é que na web a busca por um assunto costuma partir do leitor. Ele entra no Google ou em outro mecanismo de busca e é encaminhado a uma longa relação de sites. Com os apps, são as notícias que chegam ao smartphone ou tablet do assinante, embora nada impeça que o usuário faça sua pesquisa. A mudança de fluxo restaura o papel do editor, o profissional encarregado de selecionar as notícias mais relevantes e garantir que sejam vistas pelo leitor.
Os brasileiros, que estão entre os usuários que passam mais tempo na internet, também partiram para a criação de aplicativos. Na loja da Apple estão registrados 4,8 mil aplicativos nacionais. Um dos mais bemsucedidos é o Qranio, um app que mistura educação e entretenimento. Criado pelo mineiro Samir Lásbeck, o aplicativo ganhou um concurso na Campus Party em 2012 e foi selecionado pela Wayra, uma empresa do grupo Telefônica que apoia negócios iniciantes. “Cheguei lá e falavam de startup e eu perguntando: ‘Mas o que é uma startup?’ Só depois fui me dar conta de que tinha uma”, diz Lásbeck.
Depois de captar R$ 600 mil no ano passado, a empresa de Juiz de Fora alcançou um valor de mercado de R$ 20 milhões. A entrada de dois novos sócios permitiu lançar versões para vários sistemas operacionais e iniciar a expansão para China e Portugal. “Está cheio de programas que começam bem, aí não se atualizam e ninguém baixa mais. O usuário quer sempre coisa nova”, diz Lásbeck.
É uma competição feroz. Um estudo de 2013 mostra que 80% dos usuários costumam abandonar os apps no primeiro mês de uso. Um em cada cinco programas, segundo a Localytics, consultoria de marketing dos EUA, são abertos uma única vez antes de cair definitivamente no ostracismo.
Antever se um aplicativo será ou não bemsucedido é uma tarefa difícil. Muitos obtêm sucesso ao simplificar tarefas aborrecidas, mas necessárias, como chamar um táxi, pedir uma pizza ou reservar um quarto de hotel. Há gosto para tudo, entretanto. O Plague (praga, em inglês) virou um app de sucesso ao exibir imagens que mostram posts e mensagens dos usuários se disseminando (sendo lidos ou vistos por outros) como uma doença. Já o Yo é uma rede social que só permite às pessoas fazer uma coisa: mandar mensagens em que escrevem apenas “Yo”. O programador Or Arbel criou o app em oito horas, como uma brincadeira de 1º de abril, dia escolhido para lançar o aplicativo. O programa despertou tanto interesse que em julho Arbel captou US$ 1,5 milhão para criar novas versões.
E que tal surgir como um fenômeno, brilhar intensamente e desaparecer em quatro semanas, depois de arruinar a vida de seu criador? Eis a história do Flappy Bird, um joguinho com um pássaro batendo asas em um cenário que lembra o game clássico Super Mario. O jogo tornouse um fenômeno no fim de 2013, recebendo 68 mil comentários positivos na loja da Apple. Lançado em agosto daquele ano, o aplicativo havia passado meses sem chamar a atenção até que o programador Zach Williams inundou a internet com elogios à mecânica de jogo. De um dia para o outro, o criador, Dong Nguyen, um vietnamita de 29 anos, começou a ganhar US$ 50 mil por dia com os downloads. Não estava preparado para isso.
A devoção dos fãs logo foi substituída pelos protestos de que o jogo era viciante. O perfil do criador no Twitter registra sua alegria com o sucesso inicial, mas em fevereiro do ano passado ele anunciou que Flappy Bird havia arruinado sua vida: “Não aguento mais”, postou. Com fãs em choque, o jogo foi retirado das lojas, ocasionando uma avalanche de ameaças a Nguyen. Celulares com Flappy Bird instalado chegaram a ser vendidos por US$ 1,5 mil no eBay.
Depois de boatos de que havia se suicidado, Nguyen ressurgiu com um novo jogo, o Swing Copters, que ainda não alcançou o sucesso do anterior. Flappy Bird foi relançado pela Amazon com novo título, Flappy Birds Family, mas sem o mesmo frenesi.
A febre dos aplicativos também é pontuada pela evolução tecnológica dos smartphones, a ponto de ser difícil estabelecer o que é causa e o que é consequência nessa relação. O Motorola DynaTAC 8000X, primeiro telefone móvel colocado à venda, em 1983, tinha seu sistema operacional protegido como um segredo industrial. Só um pequeno círculo de programadores tinha acesso ao software e podia criar aplicativos. Outros aparelhos começaram a incluir joguinhos como os hoje clássicos Snake, Pong e Tetris, mas os recursos permaneceram precários até a primeira geração de smartphones, por volta de 2000. Só com o lançamento do iPhone, em 2007, o ecossistema de aplicativos chegou ao formato atual.
A expectativa para este ano é que sejam vendidos 1,368 bilhão de smartphones no mundo, segundo a empresa de pesquisa GfK. É um aumento estimado de 14% em relação ao volume vendido em 2014. No ano passado, as vendas cresceram 23%, para 1,2 bilhão de unidades. O maior movimento, de 59%, foi na América Latina, onde 109,5 milhões de unidades foram vendidas. Só no quarto trimestre, as vendas somaram 36 milhões de smartphones na região.
Tanto a App Store, da Apple, como a Play Store, do Google, foram lançadas em 2008. As duas rivais têm modelos diferentes. A Apple mantém o sistema operacional iOS exclusivo para o iPhone e o iPad, que ela própria desenha e vende, exercendo um controle rígido sobre os aplicativos. O Google, ao contrário, abriu o código de seu sistema, o Android, para que os fabricantes de smartphone criassem as próprias versões do sistema. É uma boa maneira de baratear os smartphones e permitir que o consumidor compre o aparelho do fabricante que quiser. Para os desenvolvedores, porém, é um pesadelo. “O Android não é tão estável. É mais fácil produzir para o iOS porque é um padrão conhecido, se sabe como funciona”, diz João Paulo Costa, criador do aplicativo Who Is Happy?.
Essa é uma das razões pelas quais dois terços dos aplicativos são lançados primeiro para iOS, embora apenas 11,9% dos donos de smartphones tenham um iPhone. A maioria (85%) usa o rival Android. A explicação é que, embora em número menor, os usuários do iPhone são quatro vezes mais propensos a gastar com aplicativos, reconhece o Google. De acordo com a Apple, um usuário médio gasta US$ 80 todos os meses com aplicativos, principalmente games. “E tem outra coisa: o usuário da App Store, quando se registra, cadastra um número de cartão de crédito”, afirma Lásbeck, do Qranio. Ao simplificar o processo, dispensando a necessidade de digitar o número a cada transação, o modelo estimula a compra por impulso.
A tendência, porém, é de reversão. Em 2014, o número de aplicativos da Play Store ultrapassou o da App Store – 1,43 milhão ante 1,21 milhão. Além disso, o Android agora conta com 388 mil desenvolvedores, superando os 282 mil para o iOS. “A Apple fez uma aposta nas classes A e B, que é quem gasta com games e algumas outras coisas. O usuário do Android procura mais serviços, que geralmente são gratuitos”, avalia Rigonatti, da Astella.
Costa, do aplicativo Who Is Happy?, criou versões para ambos os sistemas. O app indica entre seus usuários onde existe alguém fumando maconha. Como a cannabis é proibida no Brasil, o software está em inglês foi orientado para estados americanos, como Colorado, Alasca e Washington, onde o uso recreativo da droga foi liberado. Aplicativos ligados ao uso da maconha são uma tendência no Vale do Silício, caso da Privateer, de Peter Thiel, fundador do PayPal, que produz a substância para fins medicinais.
Costa tem epilepsia, diagnosticada aos 18 anos, quando sofreu a primeira convulsão. Toma dois remédios, mas a droga alivia os efeitos da doença. A ideia do aplicativo veio numa praça. “Eu pensava: será que tem alguém fazendo o mesmo em volta?” Mas seu primeiro projeto não tinha a ver com maconha. O Pergunte, serviço de perguntas e respostas, levouo a ser selecionado pela Bootcamp, uma companhia de Copenhague, na Dinamarca, que apoia negócios nascentes de tecnologia. Costa estava prestes a embarcar para a Inglaterra, onde apresentaria a ideia a investidores, quando Biz Stone, do Twitter, lançou o Jelly, um aplicativo de perguntas e respostas que tem Al Gore e o cantor Bono Vox entre os investidores. “Era a mesma ideia, então não pude ir adiante”, conta.
Para vender o Who is Happy?, em março ele planeja viajar para Denver, no Colorado, e para o Vale do Silício, na Califórnia. “Os Estados Unidos são um mercado mais maduro que o Brasil no momento”, afirma. O programa conquistou 20 mil usuários com sua primeira versão, mas apresentou “grandes problemas” depois do lançamento, na palavra do próprio criador. “Vamos corrigir antes de apresentar lá fora.”
Reinventar a popularidade do hiperlink
A internet dos aplicativos permite a criadores como Costa e Lásbeck buscar mercados internacionais sem sair de casa, mas o preço a pagar é ser menos livre. Na web é possível ir de um site a outro, abrindo diferentes abas ao mesmo tempo, se necessário. Mesmo propriedades digitais fechadas, como o Facebook, abrem links externos. Foi essa abertura que permitiu o surgimento de algumas empresas que, agora, com os aplicativos, tentam trancar seus usuários.
“É difícil, por exemplo, compartilhar conteúdo no aplicativo do Facebook com outra rede social”, diz Vagner Diniz, gerente no Brasil do World Wide Web Consortium (W3C), principal organização da padronização da web. “No W3C desenvolvemos padrões para essa comunicação em redes sociais, mas o que vemos são aplicativos que querem você preso.”
A expectativa é de uma convivência cada vez maior entre formatos diferentes de acesso à internet. Hoje, o conteúdo dos navegadores e mesmo o da maioria dos aplicativos representa menos de um quarto do volume total de dados no tráfego online. O Netflix e outros serviços de distribuição de filmes e séries, como Apple TV e Xbox Live, representam a maior parte. Da mesma maneira, lojas de games como a PSN, da Sony? serviços de voz e vídeo como o Skype, da Microsoft? e serviços de torrent, usados para baixar arquivos, são quase todos redes fechadas. Não compartilham da natureza aberta da web.
Essas transformações levaram a afirmações de que a web estaria morrendo. Em 2010, Chris Anderson, então editor da revista americana Wired, uma das mais respeitadas no mundo da tecnologia, escreveu um artigo histórico sobre o assunto, que criou impacto, mas foi bastante contestado. Especialistas e acadêmicos atacaram os argumentos apresentados. Muitos disseram que os novos meios de acesso à internet se somam e completam, em vez de destruir uns aos outros. Boa parte dessa discussão, no entanto, foi minada pela confusão entre internet e web.
No início do ano, no Fórum Econômico Mundial, em Davos, Eric Schmidt, presidente do conselho do Google, disse que a internet vai desaparecer, em resposta a uma pergunta sobre o futuro da rede. A afirmação reabriu a discussão, com múltiplas interpretações. Embora soe como uma previsão apocalíptica, a projeção do executivo vai em outra direção: a de que a internet está se tornando algo tão comum que não será possível distinguila como um fenômeno independente. “Haverá tantos endereços de IP, tantos aparelhos, sensores, coisas que vamos vestir, coisas com as quais vamos interagir, que não vamos perceber [a internet]. Ela será parte da nossa presença o tempo todo.”
A ideia mostra que os aplicativos não serão a palavra final. O que desponta é a “internet das coisas”, pela qual todos os dispositivos – o aparelho de ar condicionado, a máquina de lavar, o carro etc. – estarão conectados à internet, com funções específicas, quase sem nenhuma intervenção humana. Em 2020, segundo a consultoria de tecnologia americana Gartner, haverá 26 bilhões de aparelhos online, criando um mercado de US$ 1,9 trilhão. Foi essa a razão de o Google de Schmidt ter pago US$ 2,3 bilhões no ano passado pela startup Nest, fabricante de sistemas para casas inteligentes.
Numa abordagem mais otimista, Jeremy Rifkin, economista e teórico social americano, diz acreditar que a internet das coisas vai libertar a humanidade do trabalho. EmThe Zero Marginal Cost Society (“A sociedade do custo marginal zero”, livro não lançado no Brasil), de 2014, Rifkin, exconsultor econômico de governos da Comunidade Europeia e de líderes como o expresidente francês Nicolas Sarkozy, prevê que máquinas autônomas e tecnologias como as impressoras 3D reduzirão o custo de produção a zero.
O custo marginal é o valor final de uma mercadoria produzida em grande quantidade. Se o valor é zero, diminui a possibilidade de lucro. Se tudo for de graça, acaba a competição e, possivelmente, o capitalismo. “Com tudo sendo produzido e distribuído de graça, a humanidade não precisará trabalhar e passará a viver de forma colaborativa, o que já é a essência da economia compartilhada”, diz Rifkin.
O cenário pessimista é de futurólogos como Bruce Sterling, escritor americano e um dos criadores do movimento ciberpunk, para quem serviços fechados, aplicativos e a internet das coisas criam um novo feudalismo. Cada aparelho conectado à internet envia informações sobre seu uso para os servidores das empresas, que têm acesso total sobre os hábitos de seus usuários e podem remunerálos. Sterling é autor do manifesto The Epic Struggle of the Internet of Things (“A luta épica da internet das coisas”), de 2013, em que acusa Microsoft, Google, Facebook, Amazon e Apple de manter uma relação feudal com seus usuários. Em seu mais recente livro, Julian Assange, do WikiLeaks, também faz duras críticas ao Google.
“A maioria dos nossos dados reside em outras redes: Google Docs, Facebook, Gmail”, diz Bruce Schneier, especialista em segurança online e pesquisador do Centro Berkman para Internet e Sociedade, da Escola de Direito da Universidade Harvard. “Nossos novos dispositivos conectados à internet também são fechados e controlados pelos vendedores: iPhones, Chromebooks, Kindles, Blackberries. Os benefícios são enormes, do custo à segurança. Mas é uma relação feudal. Nós cedemos o controle dos nossos dados e plataformas a essas empresas e confiamos que vão nos tratar bem e nos proteger.”
Como em todo jogo de futurologia, é possível que nenhum desses cenários se concretize. Tecnologias que surgem em ambientes abertos costumam ser incorporadas por empresas maiores, mas, então, surgem outras inovações e as desafiam. “O que a gente vê na história é que há esse pêndulo”, diz Vagner Diniz, do W3C. “Você vê isso de trens a computadores.”
Mesmo os navegadores (e portanto, a web) podem ver sua influência voltar a aumentar. Companhias como Apple, Google, Twitter e Facebook – que vendem propaganda e têm a perder com aplicativos fechados – estão tentando reinventar a popularidade do hiperlink (o elo entre páginas na internet), estimulando desenvolvedores a incorporar sites em seus aplicativos. Em janeiro, o WhatsApp, depois de cinco anos apenas nos smartphones, anunciou uma versão para PC. “A integração dessas plataformas é um processo inevitável”, afirma Rigonatti, da Astella. “Não tem por que não acontecer.”
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Alexandre Rodrigues e João Luiz Rosa, do Valor Econômico