O Snapchat, aplicativo de troca de mensagens em vídeo que se autodestroem em dez segundos, nunca foi levado muito a sério pelos adultos. Muitos adoram retratá-lo como um ambiente perigoso, através do qual adolescentes tiram fotos nuas e as compartilham – prática chamada de sexting.
Apesar das caretas dos pais, entre a molecada o aplicativo é um sucesso. A empresa não divulga dados, mas estima-se que sua rede troque mais de 700 milhões de fotos por dia, ou cerca de mais de dez vezes o volume do Instagram.
O aplicativo é mais inteligente do que parece. Seu grande sucesso está na proposta de reinventar a chamada telefônica no mundo da comunicação móvel. Para seus usuários o que vale é o imediatismo. O aplicativo abre na câmara e limita a capacidade de subir fotos. O que se vê é o que acontece na hora. O conteúdo pode ser visto por 10 segundos, depois é automaticamente apagado.
O serviço é intuitivo, pessoal, privativo e fácil de usar. Ao combinar texto, imagens, vídeo e desenhos, é extremamente multimídia. Acima de tudo, é informal. Muito menos burocrático do que um e-mail ou até mesmo do que o Skype, em que é comum marcar e esperar por ligações.
Depois de muitos testes de formato, o Snapchat resolveu se aventurar na área de produção de conteúdo. Seu novo serviço, chamado Discover, é ao mesmo tempo novo e familiar. Mistura de portal web com revista digital, ele disponibiliza uma séria de “canais” para folhear e, caso haja interesse, ler ou ver o conteúdo sem deixar a rede social.
As notícias são fornecidas por jornais, revistas e canais de TV consolidados, como MTV, CNN e National Geographic. Cada matéria é formatada especialmente para dispositivos móveis e diagramada verticalmente para o telefone.
Mão dupla
O resultado é bem flexível. Yahoo News, um dos parceiros, tem as notícias apresentadas por um âncora, como em telejornal. O Daily Mail copia os textos de seu portal. A revista Vice apresenta mini documentários em vídeo. A National Geographic tem testes de conhecimentos. O canal do Snapchat tem um pouco de cada. Seu objetivo é replicar, em notícias, um ambiente gráfico que as pessoas já estão habituadas a ver nas mensagens de amigos.
As notícias são atualizadas diariamente, não há arquivos nem qualquer opção de compartilhamento. Quem não viu, perdeu. É um conteúdo perfeito para quem não tem muita atenção disponível – seja porque está fazendo três ou mais coisas ao mesmo tempo ou porque esteja em trânsito. De qualquer forma, há um pouco de tudo para todos.
Não é o primeiro exercício na área e está longe de ser perfeito. Canais tão diferentes quanto BuzzFeed e Wall Street Journal já experimentaram, sem sucesso, distribuir conteúdo em aplicativos de mensagens como Viber e WhatsApp. A proposta do Snapchat é mais abrangente e maleável, mas terá que enfrentar uma questão importante: será que uma geração habituada a compartilhar conteúdo confiará em canais tradicionais como CNN ou Cosmopolitan para distribuir notícias? É uma aposta considerável.
A mídia social hoje funciona como um sistema de filtro que permite aos usuários buscar conteúdos em fontes de informação e compartilhá-los com os amigos. Esse processo acaba por determinar que se leia o que é mais recente ou mais popular. A abrangência de temas é limitada pela variedade e pela extensão da rede, sem contar as restrições impostas por algoritmos de publicação, dispostos a mostrar o que tenda a ser clicado. O resultado é repetitivo e alienante.
O Snapchat Discover, mesmo que não seja um sucesso, pode mostrar novos caminhos para a geração de conteúdo editorial ao levantar questões até recentemente pouco discutidas pela Imprensa. Como o comportamento dos usuários muda de acordo com o aparelho em que o conteúdo é recebido? Qual o papel da busca na seleção editorial? Aplicativos de notícias funcionam? Dispositivos móveis amplificam ou substituem o consumo de mídia?
É muito mais fácil reclamar das novas gerações do que perceber que o cenário mudou. A ascensão das mídias sociais levou a um declínio do consumo de notícias pelos meios convencionais, deixando muita gente à deriva, dependente do que a rede do Facebook recomenda ler. O Discover não chega a ser o futuro das notícias, mas pode mudar a forma com que as pessoas compreendem, interagem e compartilham notícias. Em algumas áreas, ele pode até substituir o YouTube.
Por enquanto ele não passa de um experimento. Para se consolidar, precisa compreender que a relação do leitor/espectador com a notícia mudou de vez. O meio digital é uma via de mão dupla, e o público quer se envolver, compartilhar e remixar os conteúdos recebidos. A audiência passiva, uma distorção que surgiu com a mídia impressa, está com os dias contados. Em um ambiente barulhento, o gerador de conteúdo de qualidade, consistente e frequente continua imprescindível. O que ninguém sabe é a forma que ele terá.
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Luli Radfahrer é professor-doutor de Comunicação Digital da ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP autor do livro Enciclopédia da Nuvem; mantém o blog www.luli.com.br