Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A democracia transformada pelas redes sociais

Um novo modelo democrático pode emergir a partir das redes sociais porque há uma demanda mundial por transparência nos sistemas político, econômico e social. Esse processo já está em curso e é potencializado a partir da democratização do acesso à internet. O fenômeno avança, segundo Ronaldo Lemos, porque “a política não se confunde mais com o sistema político tradicional, especialmente com sua organização institucional em partidos políticos”.

Diferentemente das manifestações que se sucedem na Europa, Lemos frisa que o potencial de mobilização brasileiro nas redes sociais ainda não se concretizou porque a economia e a política estão estabilizadas. “Mas aos primeiros sinais de desarranjo ou tensão social mais pronunciada, podemos ter certeza de que veremos esse potencial realizado. Sem perceber, os brasileiros estão aprendendo o be-a-bá do ciberativismo nas suas práticas cotidianas na rede”, constata.

Na entrevista a seguir, concedida à IHU On-Line por e-mail, Lemos enfatiza que a participação de estratos sociais das classes C, D e E nas redes sociais “terá um impacto cada vez maior na política”. Isso porque, hoje, as 109 mil lan houses existentes no país contrastam com “2,5 mil salas de cinema, 5 mil bibliotecas públicas ou 2,6 mil livrarias”.

Ronaldo Lemos é diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro, e diretor do Creative Commons Brasil. É professor visitante na universidade de Princeton (nos EUA), professor titular e coordenador da área de propriedade da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. Fundador do Overmundo, pelo qual recebeu o Golden Nica do Prix Ars Electronica na categoria Comunidades Digitais. Foi presidente do iCommons de 2006 a 2008, organização voltada ao compartilhamento de conteúdo online.

Confira a entrevista.

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A partir das redes sociais e das novas manifestações, pode surgir um novo conceito de democracia, que vá além da democracia parlamentar?

Ronaldo Lemos– Sim. E isso já está acontecendo. A política não se confunde mais com o sistema político tradicional, especialmente com sua organização institucional em partidos políticos. Um dos impactos das novas tecnologias é o fato de a questão da legitimidade ter voltado a possuir importância na sua dimensão substancial. O sistema político atual acaba privilegiando mecanismo de legitimidade formal, como o voto. Uma vez contados os votos, qualquer tipo de “recall” seria a exceção, aplicada a casos eventuais. No entanto, com as mídias sociais difundido-se cada vez mais, multiplicam-se as questões substantivas e a possibilidade de responsabilização dos agentes públicos de maneira contínua. Isso obviamente abre um descompasso entre os mecanismos formais de legitimação com a possibilidade permanente de debate substantivo das políticas públicas.

Então, as manifestações iniciadas nas redes sociais e que ganham as praças da Europa, por exemplo, podem transformar o conceito de democracia que conhecemos hoje?

R.L.– A democracia, como tudo mais, já está sendo profundamente transformada pelo turbilhão de novas mídias que se disseminam. Cada vez que uma mídia nova surge, emergem novos hábitos e práticas, alguns incontroláveis e outros imprevisíveis. Foi assim com a imprensa, o rádio e a TV, que mudaram profundamente a forma de fazer política. O mesmo acontece agora. Só que, nos últimos quinze anos, as mudanças nessa mídia, que começa a ganhar terreno cada vez maior socialmente, foram muito profundas. Não dá para achar que a democracia vai escapar das transformações provocadas por ela.

Como vê a iniciativa do governo islandês, que propõe a criação de uma nova Constituição redigida na internet, com a participação da sociedade?

R.L.– O exemplo da Islândia chama a atenção exatamente para a possibilidade de participação política contínua, que não se resume ao voto. Um dos membros do conselho constitucional, Thorvaldur Gylfason, afirmou exatamente isso: que no modelo tradicional, os cidadãos seriam chamados apenas ao final do processo, para referendar formalmente um texto produzido por um conselho fechado. Já com a redação online da sua Constituição, os islandeses estão sendo chamados a participar a todo momento durante a formulação do texto.

O que a Islândia pode ensinar ao Brasil e ao mundo com esta iniciativa?

R.L.– A Islândia mostra caminhos para a democracia e mostra que existe um déficit crescente de participação pública na medida em que se amplia o acesso à internet e outras mídias participativas. O exemplo islandês também é importante para mostrar a possibilidade do compartilhamento de responsabilidades. Governar é saber coordenar diferentes atores sociais, como o setor privado, a sociedade civil e assim por diante. Canais de participação ampliados ajudam a romper com ideias paternalistas sobre o Estado e visões românticas de que cabe ao governo resolver tudo. Desse modo, para além das formas de participação ampliadas, acredito que a tecnologia abre o caminho para o compartilhamento de responsabilidades pela tomada de decisões políticas.

O que há de novo nas manifestações políticas manifestadas nas redes sociais?

R.L.– Uma das novidades mais importantes é a demanda por transparência. Se a ideia é elevar o nível de participação pública e a qualidade do debate, é fundamental que os dados governamentais estejam disponíveis para análise pública. Dessa forma, surgem em todo o mundo movimentos que demandam a divulgação ampla dos dados gerados pelo governo. Mas não adianta só divulgar. Isso tem de ser feito em formatos que possam ser processados digitalmente por qualquer pessoa. Por exemplo, alguém pode criar um aplicativo cruzando dados do transporte público com criminalidade, estabelecendo correlações que antes não eram óbvias e favorencendo aprimoramento das duas questões. Para que isso aconteça, é fundamental ter acesso aberto à quantidade imensa de dados coletados por órgãos públicos.

Como a internet e a interação que se dá nas redes sociais suscitam a democracia?

R.L.– A rede ampliou a esfera pública de forma pronunciada. Mais do que isso, na medida em que a inclusão digital avança no Brasil, passa a participar dela um contingente enorme de pessoas que jamais teve voz, exceto pelo procedimento formal do voto. Vale lembrar que o Brasil tem hoje 109 mil lan houses, o que contrasta com suas 2,5 mil salas de cinema, 5 mil bibliotecas públicas ou 2,6 mil livrarias. A lan house é um espaço público utilizado hoje em grande escala pelas classes C, D e E. Não dá para desprezar a presença crescente da base da pirâmide nas novas mídias. E isso terá um impacto cada vez maior na política.

Como vê a criação do portal E-Democracia? Qual a importância dele no sistema democrático?

R.L.– Iniciativas como o E-Democracia são muito importantes. São peças em um cenário que precisa tornar-se cada vez mais amigável. O grande desafio de iniciativas como o E-Democracia é competir pela atenção das pessoas, que está já tomada por suas atividades cotidianas na internet (redes sociais, e-mail, etc). Dessa forma, para que iniciativas como essa realmente decolem e sejam relevantes do ponto de representatividade, é muito importante ir até onde as pessoas estão e não apenas esperar que elas terão tempo de participar. Outra estratégia que pode contribuir para o sucesso é criar procedimentos formais de participação, chamando os interessados, inclusive grupos de interesse, a participarem do canal para debate público daquele assunto.

Como classifica a participação política e social dos brasileiros nas redes sociais?

R.L.– O potencial de participação e mobilização é extraordinário no Brasil. Esse potencial ainda não se concretizou em toda sua dimensão porque estamos vivendo um momento de relativa estabilidade econômica e política. Mas, aos primeiros sinais de desarranjo ou tensão social mais pronunciada, podemos ter certeza de que veremos esse potencial realizado. Sem perceber, os brasileiros estão aprendendo o be-a-bá do ciberativismo nas suas práticas cotidianas na rede. Em momentos de tensão, essas habilidades poderão sim ser canalizadas politicamente.