A maioria dos grandes jornais brasileiros não aborda a questão indígena com imparcialidade. Certas abordagens em algumas matérias jornalísticas acabam resgatando elementos etnocêntricos cristalizados no imaginário de grande parte da população brasileira. A questão da terra indígena Raposa Serra do Sol e a forma como grande parte dos jornais publicaram matérias a respeito mostram como muitos jornalistas não estão preparados, pois desconhecem os povos indígenas e a realidade indígena contemporânea. O campo da comunicação tem muito a contribuir para a sociedade e por isso é de fundamental importância que sejam veiculados pensamentos que promovam acima de tudo a igualdade, e não a inferiorização, independentemente da cultura, classe social ou povo abordado nas matérias jornalísticas.
Através de um discurso dominante, muitos outros discursos são silenciados, ou seja, o outro se encontra em um processo de silenciamento e nesse ponto se faz presente a problematização dos discursos. O etnocentrismo europeu está enraizado no ethos da sociedade brasileira, que foi sendo construído durante séculos sobre bases e correntes de pensamento européias. Nos conteúdos escolares brasileiros, principalmente em livros de história, as informações a respeito do descobrimento do Brasil em 1500 mostram que a visão do europeu quando nesse continente chegou ainda está presente nos dias atuais, visão essa em que os povos nativos não são vistos como sujeitos, mas como selvagens, sem organização social, sem cultura, seres sem direitos, que não conhecem o trabalho. Ou seja, vistos enquanto objetos do Novo Mundo, não como seres humanos com culturas diferenciadas e organizações sociais próprias.
Fazendo a ponte desde o nascimento do Brasil até 2008, podemos observar como a nação brasileira deu continuidade à visão que se iniciou no Brasil enquanto Ilha de Vera Cruz .Visão da fala de outros: cientistas, europeus, missionários, e não a visão do próprio indígena.
‘Caridade’ do governo
A voz silenciada não conduz sua própria vida, mas é conduzida por vozes de outros, se tornando objeto do outro, que por ela fala. Podemos observar que ao logo dos anos continua presente a imagem estereotipada a respeito do indígena e o que é ser indígena, a imagem romântica do ‘bom selvagem’ e do ‘mau selvagem’ que foi propagada pelo indianismo.
Muitas pessoas ainda acham estranho um indígena usar roupas, ter formação acadêmica, dentre outras coisas, pois foram condicionadas em sua formação a ter a imagem de 508 anos atrás e se o indígena não está na mata, dentre outras coisas, para o senso comum ele deixa de ser o que é, da mesma forma que aqueles que são mestiços, que são urbanos ou não têm o biótipo aceito, não são considerados indígenas por muitos. O próprio nome ‘índio’, dado pelo colonizador, acaba tirando o nome real desses povos e acaba sendo superficial para caracterizar quem são os povos indígenas, em um país que possui nos dias atuais mais de 230 povos diferentes entre si e 180 línguas sendo faladas, segundo registros da Funai – Fundação Nacional do Índio, fora as etnias ainda não reconhecidas.
O nome ‘índio’ normalmente sugere que são todos iguais e que suas culturas não são diferentes, quando justamente cada povo, seja Majoruna, Pankararu, Tenetehára ou Xavante, dentre outros, possui culturas diferenciadas e é uma nação diferente.
Analisando como a mídia tradicional apresenta os povos indígenas, é possível observar que quase sempre é uma imagem violenta, sempre associada a conflitos, problemas, junto a argumentos preconceituosos – raras são as matérias que não apresentam essa imagem. Em algumas afirmações como ‘Brasil presenteia 500 índios com 4 milhões de hectares’ (Jornal do Brasil, fevereiro de 2007), uma das informações passadas ao público é que as terras são presente ou caridade do governo, não uma causa que a Constituição garante.
‘Liberdade de agressão’
A afirmação ‘Índio quer apito e terra’ (JB, dezembro de 2008) mostra como o preconceito é presente de forma marcante nas matérias, embora muitas vezes não seja percebido por grande parte do público por ser algo cristalizado na sociedade. Frases, títulos e legendas como essas, que agridem, humilham, ridicularizam, inferiorizam a memória dos povos indígenas, são normalmente de matérias que acabam rompendo com as regras da deontologia da profissão, ignorando responsabilidades sociais e defendendo aquilo que interessa ao jornal enquanto empresa comercial.
O discurso de ameaça à soberania nacional feito pelo general Heleno, tão espetacularizado pela grande mídia, lembra o que o discurso nazista exacerbou na população alemã, através da propaganda, tanto em jornais, como em panfletos, rádios e comícios, colocando toda uma população contra judeus e ciganos, dentre outros, que eram vistos como ameaça ao desenvolvimento do país e uma ameaça à soberania racial ariana, vista por eles como superior a todas as outras.
No regime do apartheid ocorrido na África, com a migração de europeus para aquela região no início do século 20, leis começaram a ser criadas por alguns desses indivíduos e a política de segregação em 1948 foi oficializada, ganhando força. Os negros não tinham direito a ser proprietários de suas terras nem de participar da política, sendo obrigados a viver em locais que fossem separados dos brancos. É importante refletir sobre acontecimentos racistas que fizeram parte da história do mundo para que nem no presente nem no futuro o sentimento etnocêntrico resulte em mais conflitos violentos e genocídios.
Promover intolerância nos jornais é promover desigualdade, e não informação com imparcialidade. A necessidade da superação do etnocentrismo em algumas matérias jornalísticas é fundamental, uma vez que a veiculação de tais pensamentos racistas e preconceituosos resulta de forma negativa na sociedade, promovendo violência física e verbal contra os povos indígenas. Superar o etnocentrismo não é ser parcial favorecendo um lado, defendendo os povos indígenas e qualquer outro povo envolvido, seja indígena ou não, porém, sim, superar o pensamento etnocêntrico principalmente rumo a um pensamento onde esteja presente o respeito ao outro, entendendo que liberdade de expressão não condiz com ‘liberdade de agressão’.
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Graduanda em Comunicação Social na Unesa, Niterói, RJ; índia descendente da nação Tupinambá, voluntária na área de etnojornalimo na Rede IndiosOnline.org