O papel reúne determinadas características que serão capazes quase de eternizá-lo como meio de transmissão de informações. Seu desaparecimento só poderá ser causado por incompetência de uso, e nunca por obsoletismo.
A primeira característica que deve ser ponderada é o tempo de uso do papel como mídia. Se desconsiderarmos o uso do pergaminho, anterior à descoberta do papel com fibras vegetais pelo oficial chinês T´sai Lun (ano 105 a.C.) podemos dizer que o hábito de consumo de informações via papel tem pelo menos 2.026 anos. Um hábito tão antigo, tão enraizado na cultura de quase todos os povos do planeta, não pode ser extinto assim de repente, do dia para a noite. Se esse uso desaparecesse, haveria um contingente incontável de pessoas em todo o mundo que sentiria muita falta dele. É uma verdade que me parece incontestável.
Outra característica que torna o papel um meio condutor de informações importantíssimo é o seu caráter documental. TVs, rádio, telas de computadores são meios fluídos, fugazes, que não fixam e nem perenizam a informação. Não permitem a releitura ou a leitura das entrelinhas e nem análises mais concentradas. O hábito de consumo do papel também estabelece uma espécie de crença popular que favorece expressivamente o meio: ‘Está escrito, é verdade.’ Não existe sequer ponto de comparação entre a credibilidade que o papel inspira nos consumidores em relação à credibilidade de seu hoje principal concorrente, o meio eletrônico, que serve para difusão de todo tipo de conteúdo – falso, verdadeiro, apócrifo, maledicente, despudorado. Dizer que a tela dos computadores permite um uso idêntico é falso, pois existe muitas vezes uma terrível incompatibilidade de tempo entre notícias e usuários, além do que o exercício de leitura de notícias no computador é cansativo, às vezes desconfortável. Os arquivos de informações nos computadores têm ainda problemas de segurança e não são totalmente confiáveis. Em palavras mais simples, computadores, rádios e TVs são meios adequados para notícias rápidas, de atualidades, as chamadas hard news.
Autoestima abalada
Só o papel, além disso, nos oferece essa magnífica flexibilidade de uso, bastante restrita em qualquer outro meio, ainda que notícias nos sejam enviadas por laptops e celulares. Um jornal – ou uma revista –, você dobra, põe debaixo do braço, leva para o banheiro, para o carro, consome em viagem de carro, aviões, navios ou helicópteros sem interrupção de sinal, recorta o assunto que lhe interessa, repassa os recortes para quem quiser, cola na parede da casa, leva para o trabalho.
Só o papel se adapta com perfeição ao tempo disponível para consumo de informações do leitor, pois os outros meios exigem exatamente o contrário, ou seja, nós é que temos de nos adaptar ao tempo em que as informações são exibidas. Se não tenho de ler o jornal pela manhã, lerei ao meio-dia ou à noite; se perder o horário de um jornal televisivo ou um noticiário do rádio, perderemos as informações e ponto final. Se disponho de um computador ou celular, não posso consumir informações se estou em trânsito por regiões com sombreamento de sinal.
Não bastasse nada disso, você tem ainda a incrível capacidade do papel absorver a impressão de cores, de fotos em alta definição, de ilustrações, processos muitas vezes acompanhados de altíssimo conteúdo estético, para não dizer, ‘artístico’. O que será que vai poder substituir o prazer que todos sentimos ao folhear uma revista com alta qualidade de impressão e fotos de grande definição e bom gosto? O deleite é ainda maior quando podemos compartilhá-lo com a família e amigos no mesmo ambiente e podermos captar a reação instantânea das pessoas.
O papel terá, portanto, uma vida muito longa pela frente se as empresas que o adotam como mídia recuperarem a autoestima e procurarem valorizar o que ele tem de melhor. Fora isso, há que pensar na integração de todos os meios, cada qual dentro de sua função. Digo que as empresas que detêm mídias-papel tiveram a autoestima abalada pelo fato de não terem conseguido acompanhar a velocidade do crescimento populacional, sobretudo no Brasil. Creio não existir um só dono de jornal que não se deprima com o fato de não conseguir ir além de uma tiragem de 200 mil exemplares numa região como a da Grande São Paulo, que hoje abriga quase 20 milhões de pessoas. O que significam 200 mil exemplares dentro dessa massa populacional gigantesca?
A redundância de informações
Não sejamos pessimistas. Se um jornal que tira 200 mil exemplares por dia tiver, numa estimativa pessimista, três leitores por exemplar, atingirá 600 mil pessoas num contingente próximo de 20 milhões. É pouco ? Talvez seja, mas nem tanto. Lembremos que o leitor de jornal é formador de opinião e assim o universo de 600 mil formadores de opinião num contingente de 20 milhões pode ser significativo. A depender de seus conteúdos, um jornal pode virar até mesmo o resultado de uma eleição. É inegável, por exemplo, o peso do jornal Folha de S.Paulo no arrefecimento da candidatura de Fernando Collor (salvo pelo último debate) graças às denúncias publicadas contra o candidato do PRN.
O problema está em que a distribuição de jornais é uma operação altamente deficitária, pois o valor que os leitores aceitam pagar pela assinatura não cobre os gastos com a entrega dos jornais no porta-a-porta. Muito em função disso, a tiragem dos jornais não cresce. Diria que falta às empresas uma certa inventividade: uma publicidade – malas diretas, panfletos, catálogos – que acompanhasse o exemplar do jornal, sem fazer parte dele, poderia talvez trazer a operação de distribuição para a margem azul, pois a integração das distribuições de jornais concorrentes não foi suficiente para combater o déficit.
A sensação que os grandes jornais – apenas para não nos referirmos aos menores, que padecem dos mesmos problemas – causa a seus leitores é de que há muitos anos desistiram de concorrer com os meios eletrônicos, tal a apatia que se observa nas edições diárias. Desistiram também de concorrer entre si, tal o grau de redundância de informações que se observa nas primeiras páginas de, por exemplo, O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo.
Manchetes sem interesse
Há algum tempo, os jornais estão encavalados no mesmo espaço da internet e da televisão. Cansei de realizar o mesmo exercício todos os dias: as mesmas notícias – num volume assustador – que vejo na internet ao meio-dia verei na televisão à noite e, com forte desencanto, nos jornais do dia seguinte. Deixaram de pensar no assunto exclusivo, de sondar os interesses do leitor, de aprofundar as informações já divulgadas pela internet ou pela TV. Pode parecer inacreditável, mas os grandes jornais têm perdido para a televisão até mesmo no tratamento dos assuntos da macroeconomia – devem levar em conta a falsa ideia de que todos os seus leitores são iniciados nessas matérias de alta complexidade.
Há muito tempo, aliás, os grandes jornais brasileiros tornaram-se provincianos e brasilienses. Nada do que acontece fora da província onde estão instaladas suas sedes ou fora de Brasília merece maior atenção. O Brasil está descoberto, embora o interesse dos leitores não esteja direcionado para esse tradicional eixo de cobertura. Para mim, como leitor, por exemplo, nada foi mais interessante, mais surpreendente, do que a recente e ampla reportagem de Veja sobre os 80 municípios brasileiros que mais crescem e mais se fortalecem economicamente. Essa, digamos assim, mediocridade tem uma explicação histórica: afetados por graves crise de fundo econômico, os grandes jornais produziram nos últimos 20 anos um brutal desinvestimento em cobertura nacional com a desativação de sucursais e correspondências que sempre deram a eles um diferencial extraordinário.
Como falta sondagem aos interesses do leitor, as redações trabalham no escuro e assim perderam toda a noção da hierarquia da informação. Jornais cheiram a mofo, manchetes do tipo ‘Começa a Era Dilma’ não conseguem despertar o menor interesse, os assuntos são editados – ou escritos – do fim para o começo; assuntos que despertam apenas tédio têm um tratamento amplo, magnífico, enquanto outros, capazes de despertar interesse e curiosidade, são desprezados e atirados no pé das páginas. É de se espantar que os grandes jornais brasileiros tenham sobrevivido a esses 20 anos de internet.
A hierarquia da informação
Provincianos e brasilienses, os jornais brasileiros desistiram também da cobertura sistemática de assuntos imprescindíveis – agronegócio e urbanismo, para ficarmos em dois exemplos expressivos dessa leniência. Nos últimos 20 anos, o agronegócio foi palco de grandes transformações e continua a ser a locomotiva da economia do país. Leitores dos grandes jornais ignoram, portanto, fenômenos como o da absorção vertiginosa da tecnologia pela cafeicultura ou pela produção de açúcar e álcool ou como o da expansão da fronteira da soja ou como o do surgimento do novilho precoce que abateu pela metade o tempo de engorda da pecuária bovina. Não é inapropriado repetir que o Brasil está descoberto.
Os dados do IBGE que nos mostram que o Brasil foi palco de assombrosa migração do campo para a cidade – temos hoje menos de 18% de habitantes rurais no Brasil – não são suficientes para sensibilizar os jornais a trazer de volta às páginas a cobertura dos assuntos urbanos. O tema da reforma agrária tornou-se obsoleto. Trata-se agora quase tão somente em conferir como as grandes cidades vão atender à demanda de suas enormes populações periféricas. Não esperem dos jornais, contudo, a mínima atenção para certos fenômenos urbanos, como o daquele que expulsa todos os anos de 200 a 300 mil pessoas das regiões centrais de megalópoles como São Paulo.
Mas, afinal, como levar os grandes jornais – e também as grandes revistas de atualidade, por que não? – a ocupar espaços próprios e vencer a competição com os meios eletrônicos? Se quiserem ouvir a opinião de um jornalista com mais de 40 anos de janela na profissão, começaria por dizer que é necessário ouvir com mais atenção e carinho seus leitores. Usar os canais interativos – e outros – dos meios eletrônicos para conhecer, no detalhe, o interesse do leitor. E reagir em função deste mesmo interesse.
Tenho impressão de que o resultado desta sondagem será basicamente um único: mudar a pauta, agregar inteligência e sagacidade à pauta, fazer com que os assuntos se aproximem o máximo possível do interesse do leitor. Reaprender, dentro desse processo, tudo sobre a hierarquia da informação. Investir na reportagem (o formato mais adequado ao meio papel), voltar a investir em estruturas para cobertura no dia-a-dia de assuntos – candentes – que surgem e existem fora da província. Aprender a produzir matérias de serviço, investir em análise da tendência dos fatos. E, finalmente, apurar, apurar e apurar.
Apesar de todas as virtudes do papel, devo dizer que, a continuar na mesma toada, os jornais brasileiros só farão caminhar em direção ao abismo.
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Jornalista