Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A partida de um homem notável

 

A ciência, no Brasil, terminou a semana mais pobre que começou e essa, lamentavelmente, não é uma alegoria ou força de expressão. Na manhã de sexta-feira (16/3), o geomorfólogo Aziz Nacib Ab’Saber, o “professor Aziz” como era carinhosamente chamado, morreu em sua casa, um abrigo confortável num bairro mais distante onde, em meio a generosa vegetação, viveu, recebeu pessoas, escreveu e abrigou uma infinidade de livros.

Cientista notável, de cultura ampla − dessas que não se encontra com frequência −, generoso e emotivo como uma criança, ele não foi um acadêmico convencional. Nem um homem confortável, no sentido de satisfazer-se com o prestígio de que desfrutava já havia muito tempo. Em lugar disso foi um desassossegado, uma pessoa que teve olhos para o mundo e que enxergou na ciência uma forma de amenizar o que chamou de “infinito sofrimento humano”.

Convivi com ele por longos anos, desfrutando do conhecimento, afeto e pequenos desabafos que aliviavam seu coração atormentado pelo que considerava injustiças, incompetências, desonestidades, covardias e um conjunto de comportamentos abjetos que, em especial nos últimos tempos, têm proliferado como erva daninha.

O professor não se conformava com a postura do que chamava de “dinheiristas”, gente disposta a qualquer coisa por compensação financeira. Nem do que polida e genericamente se pode chamar de “má educação” – na verdade, comportamentos chulos, grosseiros e inconvenientes que caracterizam o comportamento, não de gente rude, que ele reconheceu e respeitou, mas de patifes de vários matizes, tipos que atacam na obscuridade para, em seguida, fugir apressada e inominadamente.

O que significa dizer que os últimos tempos de sua vida não foram, ao menos sob esse aspecto, muito fáceis.

Artesão do pensamento

O professor Aziz entrou na Universidade de São Paulo com um contrato de jardineiro, o que, um dia, relatado por uma amiga comum, me trouxe espanto e incredulidade. Antes que eu recompusesse a vida dele para concluir, mais uma vez, que ele sempre foi um homem incomum.

Notável a ponto de sofrer, academicamente, de dissabores e boicotes que só afetam as inteligências promissoras, as que incomodam pela criatividade, coragem, integridade e algo ainda mais raro que se pode chamar de “amor humano”. Amor pelos desamparados, que a sorte por alguma razão, deixou de lado. Amor por desencontrados a quem ele procurou ajudar a encontrar rumos. Amor pelos rebeldes a quem ele reconheceu razões. Amor a desafortunados carentes de conhecimento, a quem ele ofereceu livros e estímulo na periferia da grande cidade, em muitos casos acompanhados de conselhos e recomendações em voz quase sussurrada.

Por isso teve suas decepções. Como ocorreu a outro dos grandes cientistas brasileiros: como o físico Mario Schenberg (1914-1990), afastado do convívio de seus alunos durante o regime militar também por sua inteligência, generosidade e ousadia intelectual.

O professor Aziz foi um artesão do pensamento complexo, estruturado nos clássicos, no conhecimento profundo e de campo na vasta área a que se dedicou, a partir da geomorfologia, e que fez dele um dos símbolos da Universidade de São Paulo de onde foi, desde que se aposentou, professor emérito.

Ciência mais pobre

Aziz Nacib Ab’Saber, filho de um mascate libanês e de uma dona de casa brasileira, nasceu em 24 de outubro de 1924 em São Luiz do Paraitinga, no Vale do Paraíba, recentemente fustigada pelas águas turbulentas trazidas pela ocupação não ordenada.

Numa manhã de longa conversa ele relatou, com olhos marejados, a primeira memória que teve da topografia da região em que nasceu, observando o entorno do interior de um jacá de bambu, transportado no lombo de uma mula conduzida, em fila de animais, pelo pai.

Garotinho, mal alcançava o topo da peça tosca em que viajava, mas essas imagens, contou ele, o acompanharam por toda a vida: as serras azuladas à distância, efeito produzido pelo o que os físicos chamam de “espalhamento da luz azul”, o mesmo efeito que dá essa cor ao céu.

O garotinho viajava com os sentidos impressionados pelo zumbido intenso das cigarras, o perfume acentuado da vegetação pisoteada pelos animais, a voz familiar do pai, interagindo com outros trabalhadores.

Um dia tudo isso se resumiu a memória, nas lembranças dele. Em particular quando seus olhos começaram a enfraquecer – e reconhecer e recolher a bagagem na esteira do aeroporto no retorno de uma viagem já era uma tarefa desafiadora.

Aziz Nacib Ab’Saber partilhou suas qualidades incomuns por longo período com os leitores da revista Scientific American Brasil, por um convite meu, como editor, e de Alfredo Nastari, diretor de Redação.

Aprendemos com ele, partilhamos do entusiasmo dele, solicitamos a ele, muitas vezes, que abordasse determinados assuntos, com a intenção de esclarecer questões que nos pareciam obscuras aos olhos do grande público. E ele sempre nos respondeu com entusiasmo.

Os jornais, revistas semanais e o noticiário em horário nobre da TV vão falar da obra, dos títulos e da importância acadêmica do trabalho do professor Aziz. Eu apenas retiro da memória cenas de convivência com ele, com o professor Crodowaldo Pavan, com as professoras Glaci Zancan e Carolina Bori, que também dirigiram a SBPC e deixaram, em minha lembrança, exemplos edificantes.

A semana para a ciência brasileira também fica mais pobre pela partida do professor César Ades, da mesma Universidade de São Paulo, um dos fundadores do estudo do comportamento animal no Brasil, hospitalizado desde que foi vítima de um atropelamento, na quarta-feira (14/3).

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[Ulisses Capozzoli é jornalista, editor da Scientific American Brasil]