Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A questão da tutela

 

A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a validade da Lei da Ficha Limpa vai ficar para 2012. Como no ano que vem tem eleições municipais, muito provavelmente vamos assistir a um repeteco do debate sobre a aplicação da regra aos candidatos que disputarem os cargos de prefeitos e vereadores.

Como diz o Estado de S.Paulo nesta sexta-feira, dia 2, o STF julga o caso “em doses homeopáticas”. Por enquanto, apenas dois ministros declararam seus votos.

Joaquim Barbosa defende a validade total da lei, argumentando que ela está de acordo com os princípios da Constituição ao estabelecar a moralidade, a impessoalidade e a proteção do interesse público.

Outro ministro, Luiz Fux, havia concluido que os políticos só podem ser atingidos pela Lei da Ficha Limpa se renunciarem ao mandato para fugir de processo de cassação já aberto. Mas resolveu voltar atrás ao constatar que essa interpretação permitiria a candidatura de políticos como Joaquim Roriz e Valdemar Costa Neto, que renunciaram a seus cargos antes da abertura formal de processos de cassação.

Outro processo em andamento no Supremo Tribunal Federal e que tem sido objeto de interesse dos jornais é o que analisa ação contra o poder do Ministério da Justiça para determinar horários apropriados para programas de rádio e televisão. A ação questiona a validade das multas impostas a emissoras que veiculam conteúdos considerados impróprios para crianças e adolescentes nos períodos de restrição.

A rigor, quem determina a classificação são as próprias emissoras, que indicam as características dos programas que transmitem, como adequados para as faixas etárias de 12, 14, 16 e 18 anos. Mas essa autorregulação é sujeita a confirmação pelo Ministério da Justiça, que pode refazer a classificação de um programa e punir a emissora com multas e até com a retirada do programa do ar, em caso de descumprimento.

O julgamento foi suspenso por pedido de vista feito pelo ministro Joaquim Barbosa, quando quatro dos dez ministros haviam votado contra a validade das punições às emissoras.

O relator da ação, ministro José Antonio Dias Tóffoli, argumenta que o Estado não deve “substituir os pais na decisão sobre o que podem ou não os filhos assistirem”. De acordo com seu argumento, seria inconstitucional o artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê sanções para as emissoras que apresentarem programas inadequados aos horários de audiência tipicamente infantil e juvenil.

Cafajestadas na TV

A ação foi proposta pelo PTB em 2001, atendendo a um pedido da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert). Como sempre, a justificativa é a da defesa da liberdade de expressão e do suposto combate à censura.

Mas há por trás de alguns desses julgamentos uma questão que a imprensa ainda não colocou em discussão.

Em ambos os casos está em debate a questão da tutela.

Tanto no caso da Lei da Ficha Limpa como no do controle de conteúdos transmitidos por meios de comunicação de massa, parte do Judiciário, com a simpatia da imprensa, de modo geral, tende a considerar nociva a tutela do Estado sobre a sociedade, ou sobre os grupos sociais mais vulneráveis.

Como se o Estado, num país democrático, não fosse, ao menos institucionalmente, uma extensão dessa mesma sociedade.

Pode-se questionar os desvios e a pouca representatividade de alguns dos poderes da República, em circunstâncias históricas eventuais, mas há um grande risco na tendência a reduzir o papel do Estado em assuntos sensíveis como a proteção da infância e a fiscalização dos protagonistas da representação política.

Alguns ministros do Supremo Tribunal Federal e de outras cortes da Justiça brasileira são claramente encantados com o modelo americano, no qual até mesmo uma criança de dez anos de idade pode ser considerada tão responsável ao ponto de ser condenada à prisão por um simples furto.

Esse deslumbramento com o sistema americano induz o julgador a considerar que o eleitor deve ser responsável por seu voto, como se o processo eleitoral fosse um primor de transparência.

Da mesma forma, esse modo de pensar leva o magistrado a produzir afirmações absurdas como aquela segundo a qual “os pais devem controlar o que seus filhos vêem na televisão”. E outra, segundo a qual o melhor controle é o botão de desligar a televisão.

Ora, qualquer cidadão com o mínimo senso de realidade sabe que a maioria dos adultos se encontra fora de casa no período do dia em que as crianças e adolescentes estão sujeitos a programas de televisão que pregam a violência e estimulam preconceitos de todos os tipos.

Exigir responsabilidade das emissoras ainda é a melhor maneira de proteger essa audiência vulnerável. A liberdade de expressão não deve servir de amparo para as cafajestadas com que algumas emissoras costumam ilustrar suas platéias.