A pirataria foi assunto da edição número 1.996 da revista Veja em sua seção ‘Guia’. A matéria trazia o ranking da pirataria no Brasil e no mundo, quais os produtos mais pirateados e os possíveis danos a aparelhos e à saúde de quem os consome. Este último elemento da matéria, em especial, chama a atenção nem tanto pelas informações publicadas, mas, sim, por apelar para um discurso terrorista e pouco embasado.
Alguns trechos da matéria:
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‘O tênis pirata costuma causar bolhas mesmo em quem o usa com pouca freqüência. As deficiências do modelo copiado também são potenciais fontes para dores na planta dos pés, nos tornozelos e na região lombar. Com o uso intensivo do calçado pirata, afirmam os médicos ouvidos por Veja, podem surgir ainda problemas nos ligamentos, nos joelhos e nos tendões.’**
‘Os discos pirateados apresentam superfície curva: ainda que praticamente imperceptíveis, as irregularidades no disco pirata impedem que ele gire no aparelho de forma regular – como ocorre com o CD original. Resultado: o disco falsificado exige uma força maior da parte mecânica, o que acelera o desgaste da máquina.’Esta abordagem amendrontadora está presente em todo corpo da reportagem, que traz pouca informação útil para quem pretende compreender o fenômeno da cópia ilícita, suas implicações para o mercado, os interesses envolvidos, o papel da tecnologia, da política, das leis e dos costumes num cenário de mudança na forma como se produz e consome informação e produtos.
Estudo da Interpol (International Criminal Police Organisation) divulgado no final do ano passado aponta que a pirataria movimentou, em 2005, volume superior a 530 bilhões de dólares no mundo, enquanto o narcotráfico respondeu por 360 bilhões de dólares no mesmo período.
Critérios e honestidade
Também, segundo o Ibope, o dinheiro movimentado pelo comércio de roupas, tênis e brinquedos piratas no Brasil cresceu 45% em um ano, passando de 16 bilhões de reais, em 2005, para 23,2 bilhões de reais mesmo com as campanhas de conscientização, o que mostra que a estratégia de satanização da pirataria, muito usada – não apenas pela Veja, mas por grande parte da imprensa, indústria e governos –, se mostra ineficaz.
A matéria ainda vai mais longe ao apresentar deficiências técnicas graves em sua confecção. Quem são os especialistas convocados para tratar do assunto? De onde se tirou a informação de que a mídia que suporta os produtos audiovisuais pirateados é inatamente defeituosa? Ora, quando falamos de CDs e DVDs piratas, estamos falando de CDs e DVDs virgens que, muitas vezes, têm origens lícitas, vindo de empresas especializadas nesta tecnologia como a Nipponic, Samsung, Faber Castel, Sony etc…
Fica subentendido, então, que as mídias virgens estragam os aparelhos leitores. O problema que existe com mídias, usadas para pirataria ou não, é baixa a qualidade de algumas delas e o uso de rótulos de papel colante. Estes rótulos dificultam a leitura, mudam o peso da mídia e esfarelam com o tempo, danificando o canhão de leitura ótica dos aparelhos. Atualmente, existem impressoras especiais para CD e DVD, assim como mídias com espaço para impressão, que aboliram o uso desse produto.
Até se entende a aposta na desinformação e no medo que boa parte da imprensa insiste em repetir a cada vez que se trata do tema pirataria. Muitos jornais, revistas, sites, rádios e tevês fazem parte de grandes conglomerados de mídia que estão apavorados diante da possibilidade de verem o valor mais caro a suas sobrevivências, a propriedade intelectual, afrontado. Mas não apenas isto: como parte importante da dinâmica capitalista, percebem-se como defensoras naturais deste modelo, o que permite que façam de cada matéria sobre o assunto pirataria um libelo contra todos os matizes sociais, tecnológicos e econômicos formadores do ambiente da cópia ilegal.
Se o objetivo da Veja era fazer uma reportagem defendendo o ponto de vista da indústria, poderia fazê-lo falando dos empregos, dos impostos sobre as gravadoras e estúdios que encarecem os custos, entre uma série de outras possibilidades, mas não fazendo uso do medo em mais um modelo de matéria consagrado pela nossa imprensa, onde a falta de conteúdo, de profundidade, de critérios de análise e, sobretudo, de honestidade, são a norma para tratar de assuntos de interesse da empresa jornalística.
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Jornalista, Salvador, BA; http://www.abandeirapirata.blogspot.com/