Estava conectado. Tinha na mão o iPhone 4. E então escutei William Bonner, no Jornal Nacional (quarta, 5/10), anunciando, em não mais que dez dramáticos segundos, a morte de Steve Jobs. Naquele momento tive a nítida sensação de que uma parte de nosso futuro comum havia sido arrancada de nós.
Ex-hippie, membro daquela geração que nos anos 1960 queria mudar o mundo tendo como palavras de ordem o hoje clássico (e tão datado) “Paz e Amor”, Jobs foi encontrar nos caminhos do budismo as trilhas que levam para dentro, que nos fazem viajar por paisagens muitas vezes insondáveis: identificar o sonho (a meta), percorrer o caminho (a estratégia), alcançar o objetivo (tornar o sonho real, palpável, manuseável).
E foi isso mesmo que Steve Jobs fez: encurtou vertiginosamente a distância entre as tecnologias digitais e o ser humano comum, do estudante ao cientista, do ganhador do Nobel ao recém-alfabetizado, da dona de casa ao mais ousado integrante da banda de rock.
A família “i”
Quantas vezes escrevi sobre os frutos – da sempre carregada – árvore de Steve Jobs? Saudei com entusiasmo de fã e não de acadêmico o surgimento do iPad. Tratei de antever a revolução em andamento que a leitura de livros, jornais e revistas passaria com o iPad. Comparei, sem hesitação, o trabalho de Jobs com aquele realizado por Gutenberg, quando em 1492 imprimiu em traquitana de tipos móveis o primeiro livro tal como o conhecemos ainda hoje. E a imagem robusta e tocante de Gutenberg nos descortinando sua galáxia de tipos me fez instantaneamente reverenciar a consolidação de uma nova galáxia, ainda mais vibrante: a galáxia de bits, inaugurada pela dupla Jobs/Gates.
Exemplo de perseverança, confiança irrestrita no êxito de suas invenções, é notável que no espaço de apenas doze meses a Apple sucumbiu e emergiu comercialmente. Vejamos: em 1983 Jobs lançou o Lisa, o primeiro computador com uma interface gráfica, e foi um retumbante fracasso de vendas. Seu calcanhar de Aquiles: o preço de US$ 9.995. E logo no ano seguinte a Apple anunciou o novo Macintosh, que veio a ser o primeiro computador para uso pessoal (PC) com interface gráfica e mouse. Alcançou sucesso comercial imediato. O preço? US$ 2.500 a unidade.
Jobs esteve sempre preocupado em criar produtos multitarefa.Chamava isso de otimização. Mas, na verdade, ele é que era multitarefa. Nos anos iniciais e turbulentos em que lutava para consolidar sua empresa e tirar do papel suas idéias, quase sempre inovadoras, quase sempre visando um conceito hoje tão festejado como o da sustentabilidade, ele decidiu, em 1986, comprar a empresa de computação gráfica de George Lucas por US$ 10 milhões – e muda seu nome para Pixar. Menos de uma década depois, em 1995, a Pixar é a sensação no mundo da sétima arte: lança seu primeiro longa-metragem, Toy Story, que arrecada mais de US$ 360 milhões.
Preparado para longas guerras de nervos, vendo a tormenta se espalhar por sua companhia, em 1985 Jobs deixa a Apple. E o mundo descobre que o principal ativo da companhia não eram seus produtos, muito menos suas técnicas de gerenciamento e de vendas. Este ativo tinha nome e sobrenome e era Steven Paul Jobs.
Quando a empresa encontrava-se em situação crítica, lutando pela sobrevivência, acossada por concorrentes bem capitalizados e sempre dispostos a uma boa briga, vemos, em 1997, Jobs, ainda à procura de um substituto para o ex-CEO Gilbert Amélio, irromper no palco da Macworld e anunciar que sua arquirrival Microsoft investirá US$150 milhões na Apple. E, de quebra, em um movimento inesperado, informar que ele e Larry Ellison, presidente da Oracle, serão nomeados conselheiros da “nova” Apple. Já em 1998, a Apple lança o iMac, por US$ 1,3 mil, e assim tem início a era dos produtos precedidos do “i” – como o iBook, que surgiu um ano depois. Nesse ano, a empresa volta a ter lucro depois de alguns trimestres no vermelho.
Somente em 2000, após atuar por dois anos e meio como CEO interino, Steve Jobs assume oficialmente o cargo. E lança o sistema operacional Mac OS X.
Força criadora
Não é comum nem usual nos darmos conta dos tempos extraordinários em que vivemos enquanto estes estão atravessando nossas vidas. Os últimos quarenta anos tiveram as impressões digitais de Jobs. Além de dar título ao clássico de Stanley Kubrick 2001, Uma odisséia no espaço, esse ano testemunha uma revolução na música, na arte de ouvir música (pureza do som), no jeito de armazenar e compartilhar música. Foi em 2001 que a Apple lançou o iPod e a engenhoca simpática e minúscula veio substituir de vez e decretar o fim dos walkman dos anos 1980, oferecendo milhares de músicas, devidamente organizadas por título, gênero, compositor e artista.
O iPod é o primeiro tocador de música digital e seu primeiro modelo armazena até mil músicas em MP3. Com esse produto, a Apple se aproxima ainda mais das pessoas comuns. E conseguiu isso seguindo o caminho do preço: US$ 399.
Naquele 2001 a companhia inaugura suas três primeiras lojas nos Estados Unidos e, atualmente, são 300 lojas espalhadas pelos cinco continentes, sempre ícones de arquitetura minimalista e do design funcional. É a beleza nos mínimos detalhes, do atendimento à interação do cliente com o produto, apalpando-o, manuseando-o, colocando-o para funcionar e, sobretudo, passando a vê-lo como extensão de seu corpo, complemento da audição, da visão e do tato.
O início do século 21 viu o terror fazendo desabar as Torres Gêmeas e desfalcando a imagem financeira mais portentosa no horizonte da ilha de Manhattan, em New York. O mundo artístico e as empresas que comercializavam músicas estavam em polvorosa. Era um verdadeiro “voa barata” com a crescente proliferação de meios de se adquirir músicas e outros bens culturais na internet sem despender um centavo sequer a título de direitos autorais. Quanto mais a título de direitos comerciais. É quando, em 2003, Steve Jobs desvela ao mundo a iTunes Music Store, que oferece mais de 200 mil músicas digitais das cinco maiores gravadoras do planeta por US$ 0,99 cada. Com isso calam-se as vozes sombrias sempre a decretar o fim da viabilidade econômica do produto que chamamos música.
Mas, é também o ano em que Jobs é diagnosticado com um raro câncer no pâncreas e a Apple decide não revelar a informação a investidores, após consultar seu departamento jurídico. Mas foi por pouco tempo. Em 2004, aos 49 anos, ele mesmo revela pela primeira vez o seu câncer, afirmando que teve sucesso em uma cirurgia para remover o tumor e não precisaria de quimioterapia ou radiação. Na sua ausência, o COO Tim Cook comanda a Apple. Transparente, sóbrio, Jobs, em 2005, faz seu discurso aos graduandos da Universidade Stanford e não titubeia em afirmar que os médicos “me deram apenas seis meses de vida”.
Uma trajetória, por todos os motivos, singular. Em 2006, Jobs vende a empresa Pixar para a Walt Disney. Embolsa US$ 8,6 bilhões, tornando-se membro do conselho e o maior acionista individual da gigante do entretenimento. Depois, a criatividade jorra como se fosse uma fonte. Tudo o que ele toca vira sucesso. Espalha-se pelo mundo a applemania e já nos primeiros meses de 2007 a Apple apresenta à massa de seus milhões de admiradores-clientes o iPhone, aquele telefone celular dotado de “esperteza”. O smartphone, no vocábulo inglês. E então vemos as ações da empresa atingir um ápice histórico com o otimismo pelas vendas do celular contra aparelhos rivais da Palm e Research in Motion, o também celebrado Blackberry.
Em 2008 é lançado o iPhone 3G, durante uma conferência para desenvolvedores. Jobs aparece mais magro, debilitado, frágil. E, pela primeira vez, uma gigante dos negócios tem sua vida diretamente associada à vida de seu criador. A Apple culpa uma disfunção hormonal e, em julho de 2008, responde às questões de acionistas afirmando que não tem planos de sucessão e que a saúde de Jobs é uma questão pessoal. O mercado não engole esta última parte: a queda das ações no dia seguinte chega a 12%.
Em 2009, a doença continua apresentando sua fatura. Jobs diz que tem um desequilíbrio hormonal, motivo de sua impressionante perda de peso. “O tratamento para esse problema nutricional é relativamente simples”, disse por meio de um comunicado. Combativo, otimista em meio à adversidade que se aproxima, poucos dias depois se afasta do dia a dia da empresa e nomeia Tim Cook como o líder da Apple pelos seis meses seguintes. Sua explicação é de uma sinceridade chocante: “Meus problemas de saúde são mais complexos do que imaginava”. Em junho, passa por um exitoso transplante de fígado e volta ao trabalho. Mas a usina de idéias, a força criadora, a luta contra o tempo, esse recurso cada vez mais (des)humano de se lidar, ainda tem energia suficiente para dar à luz, em 2010, ao iPad. A Apple vende 7,3 milhões de tablets no primeiro trimestre.
Gosto de maçã
Neste 2011, ao dar início a uma nova licença médica, Jobs enviou o seguinte e-mail aos seus empregados: “Eu amo muito a Apple e espero estar de volta assim que possível”. Cook novamente assumiu o dia a dia da empresa e, em março último, Jobs reapareceu em público para lançar a nova versão do iPad. Era o princípio do fim. Em agosto de 2011, Steve Jobs renunciou à presidência da Apple e assumiu a presidência de seu conselho de administração. Foi o mago dos negócios: em 1980, a Apple abre capital com a ação cotada em US$ 22; atualmente, o papel vale US$ 378,25.
Na quarta-feira, 5 de outubro de 2011, rodeado de familiares, Steve Jobs nos deixou. Fica na história como o Infante Dom Henrique (1394-1460), popularmente conhecido como Infante de Sagres ou O Navegador,certamente a mais importante figura do início da era dos descobrimentos. O Navegador português seguiu sua intuição que sinalizava que a Terra não poderia ser quadrada e, partindo daí, desvendou novos mundos. Depois dele vieram Américo Vespúcio, Cristóvão Colombo e tantos outros.
Steve Jobs seguiu sua intuição e colocou a tecnologia a serviço da humanidade, alargando para ainda mais longe as fronteiras do conhecimento humano. O fundador da Apple será sempre lembrado como um dos responsáveis por produtos que revolucionaram não só a indústria da tecnologia, mas também o mercado de entretenimento.Deu início a um caminho sem volta. E com gosto de maçã. Maçã que toca música, lê livros, faz cálculos, organiza nossas memórias e faz-nos… vibrar e sonhar.
Descanse em paz, Steve.
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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter]