Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A virtude de deletar

Por milênios, lembrar foi mais difícil do que esquecer. A recordação exigia esforço e concentração. E o esquecimento era tão fácil quanto natural. Barateando e banalizando o arquivamento de dados, a era digital inverteu essa ordem. Agora, se basta um clique para achar a informação, fazer que ela desapareça é quase impossível. Com as possibilidades abertas pela computação em nuvem, quase tudo o que escrevemos, ouvimos ou até mesmo pensamos está acessível online. Os computadores ampliaram a capacidade de pensar. Mas quem disse que isso é bom?

Para Viktor Mayer-Schönberger, professor de Harvard e autor de Delete: The Virtue of Forgetting in the Digital Age (Delete: A Virtude de Esquecer na Era Digital), essa mudança da relação com a memória é preocupante. Todas as fotos, textos e comentários que você postou, mesmo que décadas atrás, continuarão arquivados na web. Mesmo fora do ar, poderão ser rastreados por sites como a Wayback Machine. Vivemos com o medo de que erros do passado voltem para nos atormentar no futuro.

‘A memória digital faz que você seja observado por todos. Agora e eternamente você será confrontado com o que fez online. Ao contrário do nosso cérebro, as máquinas não sabem pesar o que deve ou não ser deixado pra lá’, explica Mayer-Schönberger, em entrevista ao ‘Link’. Para ele, a limpeza sazonal que o cérebro humano faz é uma qualidade e não uma limitação. Nós decidimos – ainda que subjetivamente – o que será guardado e o que será descartado. É claro que, se for muito constante, o esquecimento pode atrapalhar, ‘mas ele faz que consigamos barrar eventos traumáticos e erros, para que seja possível seguir em frente’.

Já a memória digital, mesmo que quase sempre alimentada por nós, não está nas nossas mãos, mas na de grandes empresas como o Google ou companhias de cartão de crédito. E nem sempre temos o poder de deletar o que fizemos.

Qual a solução? Para Mayer-Schönberger é ensinar softwares a agir como a nossa mente. Tudo o que é arquivado deve, um dia, sair do ar. Cada vez que colocamos uma foto na web, deveremos indicar uma data de validade. Quando o prazo vencer, ela é deletada. O conceito ainda é pouco usado, segundo o autor,mas há sites que usam algo parecido, como o Drop.io. ‘Nossas informações não devem ser eternas’, finaliza.

Ou será que devem?

O pesquisador da Microsoft Gordon Bell não vê ‘qualquer utilidade’ no esquecimento. Tanto é que, com a ajuda de uma memória externa, lembra-se com detalhes de tudo o que fez desde 2001. Duvida?

Para um projeto chamado MyLifeBits, ele fez um backup da sua vida no computador. A intenção é provar que as máquinas podem oferecer muito mais verdades do que as nossas seletivas lembranças. ‘Esquecer não é uma característica normal, é uma falha, um bug’, brinca Bell, comparando as limitações do cérebro aos erros de programação.

Nesses oito anos, os dados apontam que ele visitou 221.173 sites, escreveu 156.041 textos, falou 2 mil vezes ao telefone e ouviu 7.139 músicas. Para gravar tudo o que faz, o pesquisador usa scanner, câmera, gravador, GPS, contador de passos, smartphone e um leitor eletrônico. ‘Se todos soubessem de suas vidas em minúcias, nos entenderíamos melhor, saberíamos as coisas com mais fidelidade e finalmente entenderíamos nossos relacionamentos’, promete seu parceiro de pesquisa Jim Gemmell, co-autor do livro que conta a saga de Bell, Total Recall: How the E-Memory Revolution Will Change Everything (Memória Total: Como a Revolução da Memória Digital Vai Mudar Tudo).

A ideia de Bell e Gemmell conversa com a projeção que o cientista americano Ray Kurzweil fez ao ‘Link’ de que ‘em 2045 nossa mente estará online; os outros poderão acessar nossos pensamentos de maneira simples’, mas não propõe exatamente a mesma coisa. ‘Defendemos que só pessoas próximas tenham acesso às nossas informações, como nossa família. Quem compartilha tudo com todos não passa de um maluco’, afirma Gemmel.

A ‘memória total’ proposta pelos autores é vista como uma herança afetiva. A filha que teve pouco contato com o pai poderá saber de que músicas ele gostava aos 13 anos e para onde viajou na adolescência. No entanto, no fundo eles concordam com uma ideia de Kurzweil: a de que nossa capacidade de lembrar será em breve superada pela memória do computador.

O limite das máquinas

Tudo bem, as máquinas poderão guardar mais dados que nós e, com a inteligência artificial, um dia se tornarem mais espertas que os humanos. Mas e daí? Será que algum dia elas serão capazes de relativizar esses arquivos e adquirir a capacidade humana essencial, a de sentir? ‘Só assim elas saberiam o que merece ou não ficar para a posteridade’, explica Rosa Maria Farah, autora de estudos sobre a relação entre a psicologia e as novas tecnologias.

Para Lúcia Santaella, coordenadora do núcleo de Tecnologias da Inteligência e Design Digital da PUC-SP, as máquinas irão nos superar, mas serão os homens que estarão no controle das lembranças. ‘Para armazenar, o cérebro é precário, porque é mortal. A memória digital é uma propriedade coletiva da espécie humana’, explica.

Apagar

Alguns sites já estão sendo desenhados para esquecer, como propõe o professor Viktor Mayer-Schönberger. O melhor exemplo, por enquanto, é o serviço de hospedagem e compartilhamento de arquivos Drop.io, que permite que você faça URLs privadas que, no momento em que são criadas, pedem uma data de validade para o link. Você pode programar para daqui um ano ou ‘depois que cinco pessoas viram’. Quando a data passar, a página desaparece. Dos 10 milhões de arquivos que o Drop.io tinha no mês passado, dois terços já expiraram. Um conceito parecido é usado pelo site de fotos Flickr, com seu ‘Passaporte para convidados’, com o qual uma URL só poderá ser acessada por convidados e não é arquivada na web. Com um clique, ela sai do ar, sem deixar rastros.

Guardar

Não adianta deletar sua página. A WayBack Machine é o museu da internet. O site, que tem cerca de 86 milhões de páginas arquivadas, é uma porta de entrada para o passado da rede, registrando websites que já há anos saíram do ar. É só entrar no site, digitar o endereço que você gostaria de resgatar e clicar no botão ‘Take me back’ (‘Me leve de volta’). Apesar de bastante completo, o sistema tem lá suas falhas. Sites em Flash, por exemplo, costumam não aparecer, assim como páginas muito antigas e algumas das fotos. Além da WayBack Machine, existem até projetos públicos para a preservação da memória da web. A Livraria do Congresso americano, por exemplo, articula com outras oito instituições um deles, visando manter obras que nasceram online.

Memorizar

Para agilizar o acesso a um sistema ou informação, a computação criou o cache, uma espécie de backup virtual que memoriza um conteúdo por um tempo a fim de facilitar um uso futuro. A principal vantagem consiste em evitar o acesso ao local de armazenamento da informação – que pode ser um site, por exemplo –, guardando alguns dados para acesso mais rápido. É exatamente isso que o Google faz. Quando uma página da internet sai do ar, de forma definitiva ou apenas momentânea, é graças ao cache que você pode ter acesso àquele endereço. Mas nem todo mundo quer ter seu conteúdo disponível. Para essas pessoas, o Google criou uma página com orientações. Se esse for o seu caso, acesse http://bit.ly/fKAgg

Projetar

Que tal mandar um texto para as futuras gerações da sua família, anexando vídeos e fotos? O site Futuris.me permite que você programe mensagens que serão enviadas no futuro – mesmo depois da sua morte. A ideia é deixar uma ‘herança emocional’ para quem é próximo. ‘É difícil que alguém agende um post para daqui 50 anos falando bobagens. Queremos muito mais propagar mensagens de afeto’, explica Ohmar Tacla, um dos idealizadores do projeto. Para garantir que as mensagens cheguem aos destinatários, o serviço tem diversos servidores-espelho para o caso de algum deles deixar de existir. Mas se você não quiser deixar nada para a posteridade, pode também mandar senhas para seus parentes, para que eles deletem tudo o que é seu depois que você morrer.