A cidadania brasileira, cansada de lutar contra os desvios do Executivo e do Legislativo, hoje testemunha a instalação do arbítrio em várias ações de magistrados. Alguns juízes e promotores extrapolam os legítimos limites de seu múnus, desprezam os contribuintes e decidem o que as ‘pessoas comuns’ podem ler, ver, ouvir. As desculpas para a censura enunciam a defesa dos costumes, a luta contra a corrupção ou normas emanadas do próprio Judiciário. Assim, magistrados assumem o papel de legislar.
Seria importante rever os momentos inaugurais do Estado moderno para intuir o desvio que se evidencia no Brasil, sobretudo nos atentados à livre imprensa. Os juízes, afirma Bacon (Of judicature), ‘devem recordar que seu ofício é jus dicere, e não jus dare. Interpretar a lei, e não legislar. O dever do juiz é suprimir a força e a fraude, pois a força é mais perniciosa quando aberta, e a fraude, quando oculta e disfarçada. Os juízes devem se acautelar contra as construções sistemáticas e inferências, pois não existe tortura pior do que a tortura das leis. (…) Tudo o que estiver além disso é demasiado e procede da glória, do comichão de falar, da impaciência em ouvir, da memória curta ou da falta de atenção’.
A escalada rumo ao arbítrio de algumas togas não é de ontem. Ela se une aos atos de promotores que, por excesso de zelo ou desejo de potência, reivindicam para si mesmos a tutela da cidadania.
Algo sinistro
Em 2005, o procurador Bruno Acioli tenta quebrar o sigilo jornalístico, sob o pretexto de combate à corrupção. Neste espaço (3/12/2005), ele transforma um mandamento constitucional (‘A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição’, art. 220) em via para flexibilizar o sigilo jornalístico.
Evoca o autor o caráter sistemático das garantias democráticas: ‘(…) a liberdade de manifestação de pensamento, o direito à informação e o sigilo de fonte estão intimamente ligados. Conseqüência disso é que não haverá que se falar em manutenção do sigilo de fonte todas as vezes em que esse for prescindível ao exercício profissional ou sempre que o indigitado sigilo deixar de atender a sua função social, a saber: garantir o acesso de todos à informação e à liberdade de manifestação de pensamento’.
Soberano, diz um jurista totalitário, é quem decide sobre a exceção. Perguntemos: quem decide, como decide, por que alguém decide ser a quebra do sigilo prescindível ‘ao exercício profissional’? Quem decide que o ‘indigitado’ sigilo perdeu a sua função social? O procurador e o juiz?
Ficamos sabendo que existem mentes superiores que decidem sobre a suspensão de direitos, pois o sigilo implica um complexo de direitos que o sustenta. ‘Inexistem direito ou garantia absolutos. Nem mesmo o direito à vida é ilimitado, haja vista a possibilidade de aplicação da pena de morte na hipótese de guerra’ (Acioli). O direito à vida é ilimitado. Quem o nega abre as portas para as violações resultantes. Apelar para a guerra para suspender direitos, quando não existe guerra, é antecipar algo sinistro.
E algo sinistro surgiu como fruto da beligerância contra a imprensa. Revistas e jornais têm sido censurados com base em normas cuja magnitude não é a da própria Constituição. Nas multas à Folha e à revista Veja, por entrevistas com candidatos à Prefeitura de São Paulo, as sanções se deviam a uma ordem que, reconhecida a sua inconveniência, foi modificada por quem de direito. No caso da censura imposta ao Jornal da Tarde, a questão é ainda mais complexa.
Força e fraude
Voltemos às notas de Bacon, um instaurador do Estado moderno: antes de sentenciar (antes mesmo de denunciar, no caso da Promotoria), a prudência recomenda ouvir os vários segmentos e o próprio autor que editou a norma. Esta, como reconhece o ilustre ministro Ayres Britto, vai contra a democracia, pois o núcleo do regime é o povo, único soberano.
O titular da ‘maiestas’ deve saber, antes de votar, o que pensam e pretendem os candidatos à representação. Discutir plataformas políticas é o mais comezinho dever dos que afirmam servir ao povo. Proibir tal prerrogativa é subverter a essência democrática. E, para entender a liberdade de imprensa no regime democrático, é preciso captar o significado da própria liberdade política.
No verbete ‘liberdade’ da Enciclopédia elaborada por Diderot, o dicionário que mais contribuiu para a civilização moderna, o essencial da liberdade está ‘na inteligência que envolve um conhecimento distinto do objeto da deliberação’. Exatamente o que proíbe a norma, agora adaptada. Não seria preciso tanta celeuma. A imprensa apenas segue seu alvo: denunciar a força e a fraude, sobretudo quando elas são ocultas ou disfarçadas. Bastaria, portanto, prudência, respeito pelos cidadãos e por seus direitos. Bastaria que alguns juízes soubessem que sua missão é jus dicere, não jus dare.
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Filósofo, professor titular de ética e filosofia política na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e autor de, entre outras obras, Moral e Ciência – A Monstruosidade no Século XVIII