Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A partidarização das informações sobre o poço Tupi

A questão da auto-suficiência no petróleo, para o Brasil, ocupou praticamente todo o século 20. Realmente, o tema se vem a mostrar, hoje, em toda a sua ambigüidade: se o mundo, por um lado, ainda não tem como dispensar o petróleo – veículos, máquinas, lubrificantes, utensílios feitos de plásticos dos mais variados tipos etc. –, por outro vem o problema do aquecimento global, que existe e não tem nada que ver com fascismos ou socialismos [ver ‘Incertezas por todo o lado‘]. A propósito, o periódico que procurou minimizar o aquecimento global como ameaça que paira sobre o mundo foi justamente a Veja, para a qual fora do mercado não existe salvação.

É interessante como o texto do professor Ivo Lucchesi [‘Para onde vamos?‘] se casa com o de Luciano Martins Costa [‘Imprensa resiste às boas notícias‘], embora os enfoques sejam diferentes. Ambos tratam da dificuldade medonha que a mídia encontra de lidar com o fato concernente à descoberta do petróleo no ‘poço Tupi’.

Ação popular

O primeiro coloca em questão o dado de se tratar, efetivamente, de uma descoberta, por se tratar, em seu entender, de fato que já deveria ser conhecido por parte, se não do governo, pelo menos da Petrobras – e, se era conhecido ali, de descoberta não se trataria. É a sutilíssima diferença entre saber efetivamente e o dever saber, que consta, inclusive, em um dos tipos penais do CDC – ‘sabe ou deveria saber’. No caso, o que se pode ter é a distinção entre a possibilidade da descoberta, a descoberta em si mesma e a informação da descoberta. A descoberta deveria ter ocorrido antes? Ocorreu depois do tempo em que deveria ter ocorrido? Foi informada muito tempo depois da sua efetiva ocorrência? E, por outro lado, se a solução para o problema petrolífero estaria na pesquisa submarina, como explicar, agora, os famosos contratos de risco celebrados na década de 70, cujos efeitos foram denunciados pelo liberal Afonso Arinos de Mello Franco na Constituinte de 1987-1988, rendendo ensejo à redação originária do artigo 177 da Constituição vigente? Por sinal, um destes contratos de risco celebrados na vigência da Constituição de 1967, do qual participou a Paulipetro, chegou a ser anulado, em sede de ação popular, em julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, pela ausência de autorização legislativa:

Processual. Administrativo. Ação popular. Pressupostos. Ilegalidade. Lesividade.

1. A ação popular é meio processual constitucional adequado para impor a obediência ao postulado da moralidade na prática dos atos administrativos.

2. A moralidade administrativa é valor de natureza absoluta que se insere nos pressupostos exigidos para a efetivação do regime democrático.

3. Contrato de risco sem autorização legislativa e sem estudos aprofundados de viabilidade do êxito que foi assumido por administrador público para pesquisar petróleo em área não tradicionalmente vocacionada para produzir esse combustível.

4. Ilegalidade do ato administrativo que, por si só, conduz a se ter como ocorrente profunda lesão patrimonial aos cofres públicos.

5. A lei não autoriza o administrador público a atuar, no exercício de sua gestão, com espírito aventureiro, acrescido de excessiva promoção pessoal e precipitada iniciação contratual sem comprovação, pelo menos razoável, de êxito.

6. Os contratos de risco para pesquisar petróleo devem ser assumidos pelo Estado em níveis de razoabilidade e proporcionalidade, após aprofundados estudos técnicos da sua viabilidade e autorização legislativa.

7. A moralidade administrativa é patrimônio moral da sociedade. Os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário devem proteger esse patrimônio de modo incondicional, punindo, por mínima que seja, a sua violação.

8. ‘Na maioria das vezes, a lesividade ao erário público decorre da própria ilegalidade do ato impugnado’ (STF, RE 160381/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 12.08.94, p. 20052).

9. ‘O entendimento sufragado pelo acórdão recorrido no sentido de que, para cabimento da ação popular, basta a ilegalidade do ato administrativo a invalidar, por contrariar normas específicas que regem a sua prática ou por se desviar dos princípios que norteiam a administração pública, dispensável a demonstração de prejuízo material aos cofres públicos, não é ofensivo ao inciso LXXIII do art. 5º da Constituição Federal, norma que abarca não só o patrimônio material do Poder Público, como também o patrimônio moral, o cultural e histórico’ (STF, RE 120.768/SP, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU de 13.08.99, p. 16).

10. ‘… o entendimento de que, para o cabimento da ação popular, basta a demonstração da nulidade do ato administrativo não viola o disposto no artigo 153, parágrafo 31, da Constituição, nem nega vigência aos arts. 1º e 2º da Lei 4.717/65, como já decidiu esta Corte ao julgar caso análogo (RE 105.520)’ (RE 113.729/RJ, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 25.08.89, pg. 13558).

11. ‘Antes mesmo de promulgada a vigente Carta, o STF orientou-se no sentido de que para cabimento da ação popular basta a demonstração da nulidade do ato , dispensada a da lesividade, que se presume (RTJ 118, p. 17 e 129, p. 1.339’ (Milton Flaks, in Instrumentos Processuais de Defesa Coletiva, RF 320, p. 34).

12. ‘… ultimamente a jurisprudência tem se orientado no sentido de que basta a demonstração da ilegalidade, dispensada a da lesividade, que se presume’ (Luis Roberto Barroso, ‘Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política – Ação Popular e Ação Civil Pública. Aspectos comuns e distintivos’. Jul – set. 1993, nº 4, p. 236).

13. Invalidação do contrato firmado em 11.09.79, entre a Petrobrás e a Paulipetro. Ilegalidade reconhecida. Lesividade presumida.

14. Embargos de divergência conhecidos, porém, rejeitados. [Embargos de Divergência no Recurso Especial – 14868. Relator: Min. José Delgado. DJU 18 abr 2005].

Conforto e tranqüilidade

Quanto ao segundo, o enfoque se colocou na dificuldade em se tratar de um fato que, por dizer respeito a um verdadeiro ponto doloroso no âmbito nacional – a questão da auto-suficiência em petróleo –, poderia, eventualmente, ser capitalizado politicamente pelo atual governo – até porque, embora a Petrobras tenha autonomia em relação à pessoa jurídica de direito público que a criou pela Lei 2004, de 1953, não deixa de integrar a Administração Pública Federal (administração indireta, na expressão do Decreto-lei 200, de 1967) e a direção superior desta, no sistema presidencialista adotado no Brasil compete ao presidente da República (Constituição Federal, artigo 84, II) – e geraria na imprensa que lhe é contrária um certo desconforto, que foi documentado pelas reportagens do Globo, da Veja, do Estado de S. Paulo. Até porque, curiosamente, tal descoberta, ao mesmo tempo em que poderia carrear dividendos políticos ao atual governo federal, por outro poderia reduzir a possibilidade de que a dependência de petróleo do exterior viesse a influenciar em suas relações com outros países.

Quer dizer: um dos textos vem a se colocar em relação ao ufanismo governista acrítico e o outro vem a se colocar em posição crítica ao sectarismo oposicionista diante deste fato, que constituiria, em tese, um plus em face da anunciada chegada à auto-suficiência no ano de 2006 [ver ‘Auto-suficiência de um país vitorioso‘], e que a Veja ilustrou, em sua capa, com um indivíduo montado em uma bomba de gasolina. Digo que os textos se casam porque, em verdade, ambos têm razão, simultaneamente, e convergem no sentido de apontar para mais este exemplo de partidarização das informações, em que o prejudicado, como sempre, é o receptor da informação, compelido a ficar em uma das torcidas organizadas, sob pena de se converter num outsider: cada um deles constitui, em si mesmo, um libelo contra este modo simplista de ver as coisas. Afinal, o que provoca algum tipo de desconforto, em regra, não se procura, e um dos maiores desconfortos a que se pode submeter alguém é convidá-lo a sacudir o sistema de crenças no qual se movimenta com tranqüilidade. A possibilidade de identificar, com segurança, o mal e destruí-lo é algo que conforta, que tranqüiliza, porque implica a possibilidade de arredar o que perturba o estado de tranqüilidade. A possibilidade de identificar o bem com o que agrada também conforta: mais um dos importantes aspectos do hedonismo [ver ‘Consumidor também é influenciado pelo conteúdo‘].

Ciber-apedeutas

O Parsifal, de Richard Wagner (1813-1883), oferece uma boa metáfora. As angústias de Kundry, entre Titurel e Klingsor, não precisam ser tomadas em consideração: o Jardim das Delícias por este último construído é a meta a ser perseguida. Kundry reprova ao personagem-título sentir compaixão pelo pecador Amfortas… justamente quando ela está sob o poder de Klingsor. Ouvinte do testamento musical do mago de Bayreuth há vinte e cinco anos, somente agora, assistindo à versão em DVD da Deutsche Gramophon, que documenta a montagem do Metropolitan de Nova York em 1993, tive chamada a minha atenção para esta passagem. Por que serviria, aqui, como metáfora? Porque aqui se insere precisamente o problema de que a identificação e análise dos fatos deve ser feita independentemente de se beneficiar os antipáticos e beneficiar os simpáticos, algo que requer trabalhosa pesquisa, o que vai muito além da cômoda situação que constitui a redução da pesquisa ao rastreamento eletrônico no Google, bem como da incapacidade que se tem verificado, nos tempos que ora correm, de se articular os conhecimentos que se tenha adquirido com a informação que nos é passada pela internet. Não se trata de condenar o Google ou a Wikipédia, mas sim, de apontar para o dado de que, muitas vezes, as opiniões se vão formando a partir de dados trazidos com rapidez e sem muitos detalhes e a partir de opiniões formadas por dados sem detalhes vai sendo construído o pano de fundo para a formação de verdadeiras seitas em torno dos problemas que ocorrem na sociedade.

Dificilmente se poderá encontrar alguém que não conheça alguma figura que considere suficiente o que tenha obtido como informação na internet e, portanto, venha a sentir-se desobrigado de ir aos livros para a complementar – desobrigado porque encontrou quem lhe pudesse dar segurança acerca do caminho para onde dirigir a sua destrutividade. Tais figuras, verdadeiros ciber-apedeutas, sentem-se ameaçadas quando são atingidas por um aparato conceitual que não dominem e, de logo, reagem como na Idade Média, no sentido de o considerar coisa do capeta. A internet convertida em Jardim das Delícias, onde bom é o que aos ciber-apedeutas agrada e verdade é o que lhes justifica as decisões. A pesquisa obriga a compreender e classificar as informações, submetendo as proposições a análise, para muito além da adjetivação.

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Advogado, Porto Alegre, RS