‘Eu sou legal’, afirmavam centenas de placas, conhecidas como ‘pirulitos’ por aqueles que comentam protestos, da passeata que rumava para a Praça da República, em São Paulo, na sexta-feira, 09 de maio. Ao meio-dia, perto da Estação da Luz, os manifestantes, rumando pela Rua Brigadeiro Tobias, estavam bem à vista daqueles que estavam na Avenida Tiradentes e no Vale do Anhangabaú.
O motivo do protesto vinha pelo caminhão de som: todos eles eram funcionários da Sabesp e da Cetesb – por isso que as placas diziam ‘Eu trabalho na Cetesb da cidade tal. Eu sou legal’ – que foram contratados, há quase dez anos, por outras vias que não o concurso público e, ao invés de serem legitimados, foram demitidos para a realização de concurso para suas vagas.
Organizada pelo Sintaema (Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo), tais dados primários desse protesto pacífico chegaram a mim não pelas notícias, mas sim, pela mera coincidência de estar lá na região. A curiosidade de cidadão-leitor, em saber mais, me fez aguardar o dia seguinte para ler as notícias acerca do fato.
Noção de noticiabilidade
Não foi com surpresa que percebi que nem a Folha de S.Paulo, nem O Estado de S. Paulo, deram a notícia no dia seguinte. Ambos jornais possuem a tradição de ignorar manifestações de protestos pacíficos, só noticiando quando há tumulto no trânsito. Na maioria das vezes, esses últimos elementos são o mais importante da pauta.
Só que a internet é mais uma arma para o desejo democrático de notícias. Quem tem facilidade em acessá-la, pode buscar e comparar quaisquer coberturas dos fatos. Fiz isso e encontrei apenas duas notícias, muito parecidas: uma da Agência Estado e outra do G1 (portal de notícias da Globo).
Além da estrutura básica de dois parágrafos, as informações eram as mesmas que um mero transeunte, como eu, teria visto. Na realidade, noticiavam até menos, pois nem havia referência aos ‘pirulitos’. Em ambas, nada de entrevistas, nada de mostrar os dois lados, nenhuma voz humana a não ser a do repórter-narrador.
A do G1 tinha um diferencial: ela estava dentro da seção ‘Trânsito’ e um link vermelho, no meio do matéria, dizia ‘Confira a situação do trânsito’. Nada de ‘saiba mais’ sobre os manifestantes, mas sim, um ‘saiba mais’ se a região é transitável.
Ora, será que tal fato, visível para qualquer um presente no centro de São Paulo, não era uma notícia? Como poderemos perceber a noticiabilidade dessa e de várias manifestações que não percebemos simplesmente pelo fato de não estarmos no local?
Cobertura ausente
O critério mais utilizado pelos pesquisadores em Jornalismo para definir o grau de noticiabilidade é o chamado valor-notícia. Nelson Traquina foi talvez aquele que melhor sistematizou a pesquisa feita nessa área. Apesar de considerar que os critérios para definir uma notícia podem não ter fronteitas definidas, ele divide-os em dois tipos: os de seleção e os de construção.
Dentro dos de seleção, a passeata do Sintaema claramente se encaixa em: (1) proximidade, pois aconteceu dentro da cidade de São Paulo e os veículos citados possuem cadernos/editorias inteiras (denominadas ‘Cotidiano’, ‘Metrópole’, ‘São Paulo’ etc.) que existem para dar vazão àquilo que interessa ao paulista/paulistano, mas talvez não ao brasileiro; (2) tempo, pois além de ocorrer no dia, ele possui o ‘gancho’ para o jornalista lembrar de casos parecidos que aconteceram nos últimos dois anos no serviço público do estado de São Paulo; e (3) conflito, há embate simbólico que a própria passeata, mesmo sendo pacífica, coloca como ruptura na ordem social e nos fatos que estavam acontecendo dentro da Sabesp e Cetesb.
No entanto, não há valores de construção, pois não houve apuração jornalística em si. Ora, só podemos ter simplificação, amplificação, personalização e dramatização se um repórter fosse lá e buscasse mais informações, factuais e humanas, para escrever. Em si, a passeata do Sintaema possuía os quatro valores-notícia citados, porém a cobertura não os explorou.
Uma parede branca
O que podemos perceber é que, mesmo tendo valores-notícia, um fato não é notícia (como a passeata foi tratada pela Folha) ou é mera nota no turbilhão online (para Estado e G1). Podemos até arriscar dizer que o próprio fato dela ser pacífica a relegou para as posições acimas.
Os ‘pirulitos’ não eram fortes o bastante para os jornalistas noticiá-los. Se fossem facões, tais aqueles que fotos e vídeos jornalísticos exibem em manifestações do MST, estariam na primeira página do jornal e na escalada televisiva. A multidão era pacífica demais e respeitava pedestres e policiais. Se fossem violentos, ou mesmo barulhentos demais, seriam os culpados, jornalisticamente, pelo trânsito e pelo caos metropolitano.
Na verdade, os manifestantes do Sintaema são semelhantes à personagem feminina principal do filme Medium Cool. Dirigido por Haskell Wexler e traduzido no Brasil como Dias de Fogo, o filme mostra uma longa cena final de uma mulher, com uma capa de chuva amarela, buscando o seu filho no meio do tumulto ocorrido na convenção Democrata em Chicago de 1968.
O drama pessoal da mãe é tão importante que você nem liga para os protestos ocorridos no fundo. Mesmo que sejam cenas reais – o filme é uma ficção dirigida nas ruas de Chicago durante os conflitos, tornando-se também documental –, elas têm a mesma atração de uma parede branca para o espectador.
O óbvio ululante
Ora, quando assistimos o filme pela segunda vez, percebemos que essa mesma mulher estava nas cenas iniciais do filme e com a mesma roupa chamativa. Mas, na primeira vez, não a reparamos pois estávamos prestando atenção na intelectualizada discussão que acontecia.
Cito esse filme esquecido, de quarenta anos atrás, para fazer pensarmos a passeata do Sintaema. Tal como a mulher de capa amarela na cena inicial e o protesto em Chicago da cena final, eles aparecem no grande escopo jornalístico. Eles são, sim, noticiados. No entanto, a forma de como foram noticiados equivale a não serem noticiados. Foi uma manifestação que, apesar de ocorrer materialmente na esfera pública, não ficou na esfera pública relevante que é a da mídia.
Assim, tenho uma sugestão para quem quiser realizar uma manifestação pacífica: escrevam ‘Eu sou notícia’. Talvez só mesmo o óbvio uluante para fazer os jornalistas perceberem os valores-notícia de vocês.
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Pesquisador de Iniciação Científica em Jornalismo do Centro de Estudos da Metrópole (CEM-CEBRAP) e da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP), São Paulo, SP